segunda-feira, 26 de abril de 2021

Descompressão

Abri o chuveiro e observei a água fluir impiedosa por alguns segundos antes de entrar embaixo dela. Lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e eu esperava que a água corrente ajudasse a limpar não somente meus olhos, mas a minha alma. Enquanto eu molhava o meu corpo, tentei acalmar meu coração e minha mente; e, ao esfregar o sabonete contra a minha pele, eu fantasiei que estava expulsando todas as inseguranças e dúvidas que me assolavam sem trégua nos últimos dias. Afinal, eu precisava agrupar cada fagulho de coragem que fosse possível para conseguir terminar o que eu estava prestes a começar.

No cômodo ao lado, eu sabia que o Miguel dormia pesadamente e que, se nem o barulho de meu choro contido ao seu lado era capaz de acordá-lo, tampouco o ruído do chuveiro o faria.

Nos últimos meses, eu havia dormido no apartamento de Miguel com frequência suficiente para aprender um pouco sobre os seus hábitos. Eu sabia, por exemplo, que ele jamais usava sapatos dentro de casa. E que ele guardava as panelas com comida diretamente na geladeira, ao invés de armazená-la em potes. Eu sabia que ele gostava de ser beijado no pescoço, bem abaixo de sua orelha. Observei que ele só roncava quando estava muito cansado ou quando exagerava na quantidade de vinho tinto. E que, normalmente, no dia seguinte ao exagero, ele sentia tanta azia que acordava antes mesmo de mim, levantava-se para tomar algum remédio antiácido e deitava-se cuidadosamente ao meu lado, como que para não perturbar meu sono. E, depois, perturbava mesmo assim, ao entrelaçar seus braços em volta de meu corpo antes de adormecer novamente. Mas eu não me importava. A sensação de seu toque me acalmava, e eu adorava quando me invadia a intensidade de seu hálito: uma mistura de álcool, pasta de dente de hortelã e palavras não ditas. Acho que, naquela época, era a minha fragrância preferida no mundo inteiro. Tanto que, ao ser abraçada por ele, eu inclinava a minha cabeça em sua direção para sorver o máximo possível do aroma de Miguel, desejando poder encapsulá-lo e guardá-lo para sempre.

Se existisse uma poção do amor, como nos livros de Harry Potter, é certo que, para mim, exalaria esse mesmo cheiro.

Apesar de ter aprendido um pouco sobre o Miguel nos últimos meses, eu não tinha a ilusão de conhecê-lo bem. Pelo contrário: eu sabia que esses hábitos e que os pequenos detalhes extraídos da nossa convivência não passavam de uma camada superficial do homem que ele era. E, consciente dessa cega e embriagada percepção, eu não tinha dúvidas de que, se as coisas se tornassem mais sérias, diversos aspectos da personalidade dele seriam motivos de brigas e irritação velada. Já dizia Millor Fernandes: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”. Sim. Muitas das virtudes do Miguel eram por mim imaginadas, da mesma forma que seus defeitos eram convenientemente ignorados, levando-me ao delírio de ter conhecido o homem perfeito – embora, em meu íntimo, eu soubesse que a realidade era outra. Subconscientemente, dava até um certo alívio saber que estávamos arruinados antes mesmo de o nosso amor alçar voo: pelo menos a queda seria menor.

Apesar das convicções que eu tinha, era inevitável relembrar os pequenos detalhes, trejeitos e peculiaridades de Miguel, que acabavam me despindo de qualquer certeza e me faziam questionar a decisão que eu tomara nos últimos dias. Não poderia deixar de me perguntar se eu estava me precipitando. “Tenha calma, é só o jeito dele”, alguns amigos me diziam. Pelo amor de Deus, até a minha psicóloga havia chancelado as atitudes dele, fazendo-me desacreditar a íntima sensação que eu tinha de ser descartável para o Miguel. De ser só mais uma dentre o cardápio interminável de mulheres que eu o imaginava ter.

A verdade é que o Miguel era desses homens cujo charme superava a beleza física, pois ele era inteligente, divertido, perspicaz e gentil. Da forma que eu o enxergava, estava convencida de que seu jeito era intoxicante para qualquer mulher que o conhecesse. Olhando em retrospecto, reconheço que, talvez, fosse intoxicante apenas para mim e que inexistiam milhares de pretendentes no seu encalço. Não sei. E acho que nunca saberei.

Sei, no entanto, que eu me apaixonei pelo Miguel. Isso não seria um problema por si só. Mas eu me apaixonei por ele muito antes de lhe dar uma chance de se apaixonar por mim.

Acho que, contrariando a minha ânsia de saber se aquele envolvimento sentimental era recíproco, eu tive medo de externar qualquer demonstração da minha vulnerabilidade, pois era mais fácil mentir para mim mesma do que ficar tão exposta a ponto de me magoar. Hoje vejo o quanto fui ingênua: expondo-me ou não, eu já estava vulnerável e suscetível às mágoas que naturalmente decorrem de qualquer relacionamento romântico (se é que podemos denominar assim o que tínhamos).

Não sei afirmar se ele esperava uma sinalização minha para se entregar também, mas, à época, não passava pela minha cabeça o conceito de um homem interessado e, ao mesmo tempo, desapressado. Dada a minha vasta experiência, os homens apaixonados (ou ao menos interessados) sempre tinham a tendência de fazer grandes demonstrações e, caso adotassem uma postura mais contida, eu imediatamente os taxava de indiferentes.

Miguel exalava esse ar blasé com tanta naturalidade que eu nunca sabia o que se passava em sua mente. Por exemplo, quando afirmava querer casamento e filhos, ele o fazia com um distanciamento abnegado, como que declarando não os querer comigo. Como se fosse um acontecimento de um futuro bastante longínquo, mas não factível com a mulher que dividia sua cama aos finais de semana.

Frequentemente ele externava o seu desejo de viajar sem rumo e – quem sabe? – mudar-se de país. Sempre tão sonhador o Miguel! Eu certamente teria considerado que essa sua personalidade aventureira e audaciosa era uma grande virtude, se ao menos ele tivesse me incluído em seus planos. Contudo, diversamente do que eu esperava, ele sempre falava de seus grandes sonhos com uma comoção individualista, fazendo-me sentir deliberadamente excluída e caladamente abalada.

Miguel tinha essas camadas de personalidade – ou autenticidade? – que eu julgava impenetráveis.

Quantas noites passamos no sofá desbotado de seu apartamento, sentados um de frente para o outro, bebendo goles despretensiosos de vinho tinto, sem que eu jamais conseguisse estabelecer uma conexão íntima com ele! Todas as vezes que eu tentava, disfarçadamente, falar sobre sentimentos, ele contornava o assunto de maneira quase imperceptível, com a perícia de um craque de futebol que dribla o seu oponente.

Acho que, por isso, o ato mais íntimo da nossa relação era o sexo. Na cama, a falta de roupa parecia encorajar que nos desnudássemos das nossas outras armaduras e, frequentemente, sussurrávamos palavras de carinho um para o outro. Eram aquelas doses de afeto que me nutriam e me bloqueavam a partida toda a vez que eu cogitava abandonar permanentemente o apartamento de Miguel. Era o anseio de absorver aquelas poucas migalhas de amor – envoltas em suor, gemidos e orgasmos – que me fazia voltar, semana após semana.

Uma única vez, enquanto ele gozava dentro de mim, pensei tê-lo ouvido sussurrar em meu ouvido que me amava. Não tinha certeza. A intensidade fora tamanha que a frase saiu quase como um rosnado, impedindo-me de interpretá-la com clareza. Passado o clímax, ele agiu como se nada dissera e, facilmente convencida de que o prazer às vezes leva as pessoas a expressarem emoções vazias, eu tampouco retribuí as palavras.

Embora esses esparsos momentos de felicidade tivessem o condão de preencher com calor meu coração já calejado, a calmaria durava poucas horas. Sempre que eu saía de seu apartamento na manhã seguinte, sentia, gradualmente, o pesar se instalar em meu peito, decorrente da perspectiva de dias sem vê-lo – e, consequentemente, dias sem seus sussurros calorosos, contrapostos à fria distância que se seguia aos nossos encontros.

Na verdade, Miguel falhava em me dar a segurança necessária sequer para saber se eu voltaria a vê-lo. Depois de nossas interações, às vezes passávamos dias sem nos falar.

Tolamente, eu sempre acreditava que, após o último encontro, as coisas seriam diferentes. Afinal, eu confiei nos meus amigos e na minha psicóloga: Miguel só precisava de tempo para notar o quanto eu era incrível. E que, mais cedo ou mais tarde, ele se apaixonaria por mim da mesma forma como eu me apaixonara por ele.

Para minha infelicidade, esse evento tão antecipado por mim não aconteceu “mais cedo” e eu continuei, incansavelmente, esperando pelo “mais tarde”, embora em meu âmago eu soubesse que esse dia jamais chegaria.

Eu repetia para mim mesma: quando eu encontrar a pessoa certa, ou o “amor da minha vida” – como o meu lado romântico preferia classificar –, tudo será leve. “O nosso envolvimento ocorrerá de modo natural”, eu acreditava. E, ainda que fosse mais fácil me enganar dizendo que as coisas caminhavam assim com Miguel, eu não pensava ser razoável que um relacionamento de quase seis meses não tivesse qualquer perspectiva de futuro.

No começo, eu quase me afogava em meu próprio orgulho e, em diversas ocasiões, vi-me prestes a apertar o botão de “ligar” em meu celular só para ouvir a voz de Miguel, tamanho era o meu desejo de vê-lo. Mas, convicta de que minha ligação não seria bem recebida, eu abandonava o telefone ao lado, com as mãos trêmulas e os olhos marejados, buscando me ocupar com outras atividades para tentar afastá-lo dos meus pensamentos, sem sucesso.

Aos poucos, essa situação foi se tornando cada vez mais difícil.

Durante o dia, eu buscava lugares ocultos no trabalho onde eu pudesse chorar calada sem provocar grandes comoções entre meus colegas.

Em casa, antes de dormir, eu rezava, implorando para que qualquer força sobrenatural ou divindade religiosa me desse forças para superar aquela paixão que eu supunha não correspondida.

Durante as sessões com minha psicóloga, não havia assunto que eu considerasse mais relevante que Miguel.

Em minha vida, ele se tornara tormenta e calmaria. Guerra e paz. Desespero e euforia.

Só Miguel supria a falta que ele certamente não causara. E apenas nos momentos em que estávamos juntos eu tinha a ilusão de preencher o vazio de sua ausência, mesmo sabendo quão breves eram nossos encontros.

Apesar de ficarmos mais tempo separados do que juntos, Miguel me dava pequenas sinalizações de que eu poderia entrar mais fundo na água sem me afogar.

Por exemplo, quando já fazia um mês de nossos encontros, ele comprou uma escova de dentes nova para que eu deixasse em seu apartamento. Pouco depois, constatei que ele havia comprado travesseiros novos – ele parecia satisfeito com os seus, mas aparentemente não lhe passou despercebido que, após nossos pernoites juntos, a primeira coisa que eu fazia ao acordar era alongar meu pescoço. Noutra ocasião, notei que ele instalara um filtro de água em seu apartamento. Quiçá porque eu me queixava de nunca ter água gelada para bebermos – mas quem sabe?

Miguel fazia esses gestos aleatórios de carinho e nunca agia como se fosse grande coisa. Ele simplesmente me deixava descobrir tais atos singelos por conta própria, sem alardear sua gentileza.

Acho que, tola que eu era, enxerguei o que eu queria enxergar. E, à época, quis interpretar essas atitudes como um claro indício de que eu não era a única envolvida naquela relação. Que ele não me encontrava só pelo sexo. Ou para preencher a sua solidão. Que, de fato, estávamos construindo algo juntos.

Por já ter sofrido no passado, meu mantra para relacionamentos se tornara: “vou amar profundamente, mas conferir volta e meia se ainda dá pé”. E, na imensidão que era Miguel, eu fui me entregando somente na medida em que me acostumava com a água, mas certamente calculei mal – até que me afastei demais da margem.

Com o tempo, passei a sentir que ele era simplesmente indiferente em relação a mim. Uma indiferença incalculada.

Por sorte, em algum momento durante esses seis meses, sua indiferença me motivou a mudar.

Eu havia cansado de pensar nele constantemente, esperando inutilmente receber notícias suas durante os dias de semana. Estava exausta de deixar a sua sombra me desconcentrar o dia inteiro, afetando até mesmo o meu trabalho. Eu estava esgotada de chorar, como se minhas lágrimas tivessem secado por sua causa. Cansara-me de sentir o seu aroma aleatoriamente pela rua ou pela casa, desejando que ficasse encrustado na minha pele, pois dessa forma eu sentiria sua ausente presença.

E – principalmente – eu não aguentava mais esconder meus sentimentos, dissimulando a pessoa carinhosa que, outrora, eu me orgulhara de ser, apenas para manter um falso status de alegria perto de Miguel. Para sustentar alguma estabilidade com ele, embora eu mesma estivesse tão instável.

Eu cansara de lutar pelo Miguel.

Eu cansara da sensação de me sentir sozinha em uma dinâmica que, por excelência, deve ser compartilhada a dois.

Estava farta de orgasmos, mas vazia de sentimentos.

A nossa ruína poderia, sim, ter sido causada por diversos aspectos cotidianos: o jeito dele tão bagunceiro, as minhas manias verdadeiramente implicantes. Mas não. Tudo ruiu pela falta de um ingrediente tão elementar e, ao mesmo tempo, tão trivial: a falta de reciprocidade.

O problema é que, quando estávamos juntos, parecia-me que nossa ligação afetiva era real e que eu presumia a ausência de reciprocidade unicamente pela insegurança que nossa separação física me provocava.


Talvez por isso eu tenha demorado tanto a colecionar a bravura necessária para ir embora.


Em determinados dias, nossa conexão era tão verdadeira, tão palpável, que me transbordava a vontade de agarrá-lo pelos ombros, chacoalhá-lo e questioná-lo se aquele vínculo era somente fruto da minha imaginação. Apesar de não faltar vontade de fazê-lo, eu morria de medo da resposta. Porque aprendera desde uma tenra idade que a reciprocidade não se cobra. Que o afeto não se exige. E que o amor não se implora.


Então, ignorando esse anseio, segui em silêncio – por quase seis meses – assistindo à decadência do nosso amor natimorto, até sobrarem apenas os escombros das boas lembranças.

Dissipando-me de meus devaneios, desliguei o chuveiro. Sequei-me com a toalha que Miguel comprara para mim certa vez. Agora que eu estava prestes a terminar tudo, parecia que aquele dia – tão feliz – acontecera em outra vida.

Caminhei silenciosamente até o quarto, onde Miguel ainda dormia, com um ronco leve e a expressão angelical. Não pude deixar de sorrir ao pensar na coincidência: Miguel tinha nome de arcanjo... e talvez por isso sua presença me desconcertasse tanto.

Vesti silenciosamente minha roupa e organizei a pequena mochila com meus pertences em um canto do quarto.

Sentei-me na beirada da cama e fiquei alguns minutos observando Miguel dormir, já antecipando a nostalgia que o vazio de sua ausência traria. Respirei fundo para evitar que as lágrimas traíssem minhas certezas. Eu estava decidida a não chorar. Se havia algo pior que falta de reciprocidade, era pena. Eu não queria que Miguel sentisse dó de mim. Tampouco que ele pensasse que minha tristeza era uma forma dissimulada de fazê-lo me pedir para ficar. Não. Nenhuma gota.

Não sei se foi porque percebeu que alguém o observava ou por causa do meu longo suspiro, mas, segundos depois, Miguel abriu os olhos.

Fitou-me por alguns segundos antes de exibir um sorriso indagador.

Pensei que fosse me perguntar por que eu já estava vestida. Mas desviou o olhar e viu meus pertences arrumados no canto do quarto. Franziu o cenho e sentou-se na cama.

“Você já vai?”, ele perguntou. “Aconteceu alguma coisa?”

“Não, não aconteceu nada”, eu respondi balançando a cabeça. “Mas já vou”, acrescentei.

Miguel coçou os olhos e bocejou e, puxa vida, por que ele precisava ser assim tão sedutor até quando estava acordando?

“Olha, eu...”, comecei. Respirei fundo. As palavras me fugiam quando eu mais precisava delas.

“O que foi?”, ele se aproximou de mim e pegou a minha mão. “Pode falar”, incentivou.

“Miguel...”, consegui dizer com a voz fraca, “eu vou embora e não vou mais voltar. Esses últimos meses... foram incríveis. Mas acho que está na hora de seguirmos cada um o seu caminho”.

Ele me fitou e ficou em silêncio. Desesperada para quebrá-lo, continuei falando: “Desculpe. Não queria que fosse assim. É que... acho que isso não está me fazendo bem”.

Miguel esboçou um sorriso triste. E disse: “quantas vezes eu já te falei para parar de pedir desculpas?”. Externei uma breve risada, interrompida pela infeliz perspectiva de que, provavelmente, aquela seria mesmo a última vez que ele me falaria para parar de me desculpar.

Olhei para minhas mãos e, dessa vez, foi ele que quebrou o silêncio: “mas por quê? Achei que estivéssemos nos divertindo...”

Balancei a cabeça em negação. É. Ele não tinha entendido nada mesmo.

“E estávamos”, afirmei. “Estamos! Mas...”, engoli em seco antes de dizer as palavras que eu passei meses sem coragem de pronunciar: “Mas eu quero mais”.

Ele pareceu confuso. Achei que ele fosse perguntar “mais o quê?”


Cheguei a desejar que ele realmente me questionasse, só para que eu finalmente pudesse libertar todas as emoções que haviam ficado engaioladas em meu peito por tanto tempo. E, destemida, pudesse dizer-lhe a plenos pulmões: quero te dar mais carinho, quero receber mais afeto, quero correr mais riscos, quero uma overdose de você!

Mas, ao invés disso, ele disse: “você nunca pediu por mais”, e afastou o seu olhar do meu, passando a fitar o chão.

Neste momento, eu soube que aquela incapacidade de me encarar só podia significar uma coisa: que eu poderia, mesmo, ter pedido. Que eu poderia ter até implorado. Mas ele não estava disposto a me dar mais. Ou não estava pronto. Não sei. Só sei que eu não estava disposta a ficar para descobrir.

Peguei-me dizendo, quase exasperada: “mas essa é a questão, Miguel! Eu não deveria ter que pedir...”

Ele apenas assentiu e levou a minha mão, que ainda segurava, aos seus lábios, dando um beijo que eu interpretei como uma despedida.

Engraçado. Seis meses de história para acabarmos assim: com um beijo dele na minha mão e lágrimas fantasmas em meus olhos. Como se tudo não tivesse passado de um delírio da minha cabeça.

Levantei-me devagar e peguei minha mochila no canto. Olhei mais uma vez para ele antes de sair do quarto e fechar a porta atrás de mim.

Descendo pelo elevador, refleti. Sobre uma coisa, Miguel tinha razão: eu nunca havia pedido por mais. Eu simplesmente me contentara com as pequenas parcelas de afeto que ele relutantemente me ofertava e, agradecida, eu não reclamava. Pelo contrário: ansiava por receber essas cápsulas de alegria dosada, quase como um viciado que se droga pelo frenesi momentâneo, mesmo sabendo que depois passará dias em abstinência.

Motivada pelas palavras de Miguel, eu fiz uma promessa para mim mesma ao sair de seu prédio: eu nunca mais me contentaria com pouco. Porque não devo ter medo de ficar sem as tais pequenas e limitadas porções de afeto.

Mas sim: devo ter medo de ficar onde não tem amor. Devo ter medo de não dar mergulhos profundos. Afinal, eu – sozinha – me desafogara das profundezas aonde Miguel havia me levado.

Então, como exímia nadadora que sou, seria uma pena e um desperdício se eu ficasse, para sempre, no nível seguro da superfície.


Victória Pereira Martins
16 a 26/04/2021




"Onde não puderes amar
não te demores" (Frida Kahlo)

quarta-feira, 24 de março de 2021

Tal como vinho tinto

Toquei o interfone enquanto observava, distraída, o movimento da rua. Poucos carros transitavam àquela hora e o restaurante japonês do outro lado da calçada já estava com o movimento diminuto. Na rua pouco iluminada, puxei minha jaqueta mais próxima ao meu corpo, de modo a cobrir meu colo desnudo, protegendo-me do vento gélido que soprou sem aviso.

Enquanto uma das mãos segurava a jaqueta, a outra segurava uma garrafa pesada de vinho tinto. Eu a segurava com força, temendo que seu peso fizesse com que a garrafa sucumbisse ao chão. Na realidade, eu havia escolhido esse vinho com tanto esforço e minúcia, que eventualmente perdê-lo de uma forma trágica seria equivalente à uma premonição de que aquela noite também ruiria.

Eu estava trajando um vestido florido e decotado, que destacava majestosamente as curvas de meu corpo, fazendo-me esquecer que sua aparência não me agradava tanto quando estava despida. Sacudi a cabeça para afastar os pensamentos de que aquele vestido não poderia disfarçar minhas várias imperfeições quando caísse, amassado, no chão do apartamento do Rafael.

Afastando-se de meus devaneios, uma voz feminina veio do interfone, saudando-me, e fazendo-me informá-la meu destino: “apartamento 81”. Poucos segundos depois, ouvi o portão destrancar e empurrei-o com força para permitir minha entrada.

Nesse momento, passei a desempossar um pouco da tamanha coragem que me envolvera ao aceitar aquele convite. Afinal, eu e o Rafael mal nos conhecíamos. Quando ele me chamara para ir à sua casa e “tomar uma taça de vinho”, eu aceitei sem pestanejar. Mas, agora, caminhando até o elevador, eu questionava se havia sido a melhor decisão.

A primeira e única vez que nos encontramos havia sido por um amigo em comum, que nos apresentara durante uma festa. Confesso que não conseguia me lembrar daquele dia com nitidez, talvez por culpa dos muitos drinks que alegremente traguei, talvez em virtude do entorpecimento que senti ao ver o sorriso do Rafael.

Era um sorriso que não guardava lascívia ou até mesmo segundas intenções. Era um sorriso de quem aparentava estar genuinamente feliz em me conhecer. E, associado ao seu entusiasmo e energia positiva, aquele era simplesmente o melhor sorriso que eu já presenciara.

Tanto que, hoje, olhar em retrospecto para esse momento é como vislumbrar a cena de um filme: ele e seu sorrido em destaque, enquanto todo o resto à sua volta em desfoque.

Acho que por isso comecei a fraquejar ao entrar no elevador para subir ao seu apartamento. O nosso primeiro encontro parecia tão mágico, que só a ideia de o macular com um segundo encontro fracassado me causava arrepios.

Além disso, mesmo com um único e breve encontro prévio, o Rafael havia encontrado um jeito de penetrar na minha mente como se fosse goma de mascar. Por alguma razão que eu ainda não compreendia, eu havia passado os dias que se seguiram àquela festa fantasiando com a nossa próxima interação. E eu, que sempre fora fria e alheia aos encantos masculinos, vi-me completamente vulnerável por um homem de quem pouco sabia.

Após apertar o botão do 8º andar, notei o quanto as minhas pernas estavam bambas e desejei que o elevador ascendesse vagarosamente, para que eu pudesse retomar a minha compostura. Mas o tempo parece ter vontade própria, principalmente quando desejamos que ele seja mais lento ou mais célere e, antes que eu pudesse me dar conta, o elevador apitou anunciando o andar selecionado, abrindo suas portas para a minha próxima aventura.

Bati à sua porta com suavidade, sem querer provocar um barulho muito alto, e imediatamente me arrependendo pela possibilidade de causar-lhe a impressão de ser muito tímida.

Segundos se passaram nos quais eu só conseguia ouvir o som da minha própria respiração. Cogitei bater mais uma vez, mas antes que eu pudesse fazê-lo, notei que do outro lado as chaves giravam no fecho para destrancar a porta. Segurei a minha respiração, sentindo-me patética por estar tão nervosa e apreensiva por um simples encontro com um (quase) desconhecido.

Meus pensamentos eram tão pronunciados, tão palpáveis, que a mim parecia que pairavam sobre o ar.

E, então, no momento em que Rafael abriu a porta, esses pensamentos simplesmente caíram ao chão, com um baque surdo apenas existente na minha lembrança.

Seu sorriso era exatamente como eu lembrava: amplo, com dentes perfeitos e expressivo de seu entusiasmo. Embora comumente se diga que os olhos são as janelas para a alma, para mim, em Rafael, era seu sorriso.

“Olá”, ele me saudou. “Que bom que você veio!”, acrescentou. E me abraçou.

Não apenas em seu sorriso residia a sua vivacidade, mas também em suas palavras e na forma como me abraçou tão ternamente, demonstrando ser possível ser a própria personificação de seus sentimentos.

Retribuí o abraço e o cumprimento, tentando soar tão feliz quanto ele soava e buscando aparentar o menos nervosa possível.

Entramos.

“Ah, desculpe a bagunça”, ele se justificou despretensiosamente. “Faz pouco tempo que me mudei, então ainda estou colocando as coisas em ordem”.

Olhei à minha volta e, de fato, o apartamento era um pouco bagunçado. Havia uma mesa no canto, com alguns pertences desordenados, um computador fora de uso e um quebra-cabeça montado, com uma única peça faltando. Algumas mochilas jaziam esquecidas no chão embaixo da escrivaninha, junto a quadros que certamente esperavam para serem pendurados.

“Ah, não se preocupe! Não está nada bagunçado”, menti, sorridente. “Trouxe um vinho para nós!”, emendei para ele não perceber a minha mentira e entreguei-lhe a garrafa de vinho, aliviada por não tê-la quebrado no trajeto.

Ele pegou a garrafa e convidou-me para nos sentarmos à mesa de jantar, onde já havia duas taças aguardando para serem preenchidas com o vinho tinto.

Fizemos um brinde e, ao tomar um gole, olhei fixamente nos olhos de Rafael, desejando que na verdade fosse sua boca a tocar meus lábios.

Ele elogiou o vinho e passamos a compartilhar amenidades. Seu jeito de conversar condizia perfeitamente com a energia que aquele sorriso sugeria, pois ele emendava diversos assuntos sem jamais deixar se instalar um silêncio constrangedor. Nenhum tópico era inalcançável para ele: além de aparentar saber um pouco de tudo, ele não se sentia constrangido com conversas mais profundas.

Assim, falamos sobre casamento e filhos. Ele os queria, tanto quanto eu.

Falamos sobre relacionamentos passados. Ele falou com carinho de uma antiga namorada e eu contei, com desgosto, a pior decepção romântica que eu já vivenciara.

Falamos de gostos musicais e experiências de vida.

Falamos do amigo em comum que nos apresentou.

Falamos do jantar que ele nos serviu, e que obviamente não saíra como o planejado. Tentei, sem soar arrogante, explicar-lhe onde ele provavelmente havia errado.

Falamos sobre tudo e sobre nada.

Falamos tanto até que paramos de falar, quando ele simplesmente levantou-se sem pronunciar qualquer palavra e, pousando a sua taça de vinho na mesa, ofereceu-me a sua mão, que eu prontamente segurei.

Ele sentou-se no sofá e eu me sentei ao seu lado. Gentilmente, ele ajeitou uma mecha de cabelo atrás de minha orelha e, aproveitando o movimento, puxou-me pela nuca e me beijou como eu jamais havia sido beijada antes. Não demorou muito para o beijo se tornar menos gentil e, antes que eu me desse conta, estava sentada de frente para ele, em seu colo, com minhas pernas sobre as suas.

O toque e o beijo tornavam-se cada vez mais quentes e, mesmo com o vento gélido que entrava pela janela aberta, parecia que fazia quarenta graus dentro daquele apartamento.

Ele se levantou, carregando-me em seus braços enquanto minhas pernas se enrolaram em volta de seu quadril e, poucos passos depois, me deitou na sua cama.

Despiu-me sem pressa e beijou cada centímetro do meu corpo enquanto o fazia, de modo que, quando ele me possuiu, eu já estava quase implorando por isso.

Por mais que eu tivesse fantasiado com esse momento inúmeras vezes, jamais seria capaz de imaginar tudo da forma como aconteceu. Não sei se foi porque tínhamos uma química indescritível, ou porque ninguém jamais fizera amor comigo com tanta vontade, mas lembro-me de pensar, enquanto me entregava ao Rafael, que eu sequer conhecera verdadeiramente uma conexão genuína antes.

Terminamos juntos, mas ele não se desvencilhou de mim depois de se satisfazer.

Pelo contrário: parecia que o contato físico e o carinho o satisfaziam na mesma medida do orgasmo sentido pouco antes.

Quando retomamos nossos fôlegos, ele soprou um beijo em meu pescoço e sussurrou, baixinho: “Posso fazer uma confissão?”

Assenti, dando risada, imaginando que sua revelação fosse algum comentário erótico.

Diversamente do que eu esperava, ele respirou fundo e respondeu, sério: “Eu estava sonhando com isso desde que nos conhecemos. Gostei de você no momento que te vi. Que sorriso! Que energia! Você é encantadora...”, e deixou suas palavras pairando no ar, com a maior naturalidade do mundo.

A sorte é que eu estava deitada de costas para ele, assim ele não conseguiu ver a expressão de choque que eu esbocei.

O meu sorriso o impressionara? Eu ocasionei devaneios nele da mesma maneira que ele os infligiu a mim? Será que ele também estava nervoso para o nosso encontro?

Passado o choque, sorri boba com a sua afirmação, julgando-me ingênua e talvez insegura demais por não ter cogitado que ele pudesse ter compartilhado os mesmos sentimentos que experimentei quando nos conhecemos.

“Sério?”, questionei, tentando parecer espontânea e nem um pouco surpresa. “Bom, ainda bem que tiramos essa fantasia da sua imaginação, né?”, declarei, decidida e brincalhona.

Ele me virou para ele e, com uma expressão tentadora, voltou a me beijar, rendendo-me completamente sob seu abraço, sem me oportunizar qualquer chance de saída. Não que eu quisesse sair daquele enlace. Talvez nunca mais.

Não sei quanto tempo durou nosso desfrute mútuo, mas passamos boa parte daquela madrugada sem conseguir tirar as mãos um do outro. Depois, embalamos em um sono afável: abraçados e entorpecidos.

Que noite memorável!

Tanto que, ainda hoje, lembro-me de tudo exatamente como aconteceu. E, agora, enquanto me sento no sofá para escrever as memórias daquela noite, tenho apenas uma certeza: o homem que está sentado ao meu lado ainda é o dono do melhor sorriso que eu já vi.


Victória Pereira Martins
23/03/2021

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Essa não é mais uma carta de amor

Estou sentada olhando para este papel por tanto tempo,que os minutos passados já parecem horas. O vai-e-vém da minha mente inquieta não permite que eu esboce uma frase coerente sequer. Acho que você tem causado isso em mim.

Foi por isso que, a princípio, me sentei para escrever esta carta de amor.

Mas, tentando traduzir em palavras os sentimentos que se afloraram neste último mês, eu me dei conta de que não fazia sentido escrever uma carta de amor.

Em primeiro lugar, porque não sei ao certo se já é amor. Ou se vai ser um dia. Pode ser que se transforme em uma linda história de amor. E pode ser que essa euforia nunca evolua para nada além disso. Pode ser que daqui a um ano eu nem lembre seu nome. E também pode ser que, em muitos anos, estejamos relatando a história do nosso primeiro encontro aos nossos netos.

Diante de tantas possibilidades, eu concluí que é desnecessário te escrever uma carta de amor.

Veja: em uma carta de amor, eu provavelmente escreveria súplicas para você não quebrar o meu coração. E te recordaria todas as vezes em que ele já foi quebrado por outras pessoas, das formas mais variadas e cruéis possíveis, na esperança de te dissuadir a me expor novamente a esse tipo de sofrimento.

Mas isso não é uma carta de amor. Então não vou te pedir para não quebrar meu coração.

Por mais que seja tentador, seria injusto colocar tanta pressão em você, atribuindo-lhe uma responsabilidade por erros e dores que você sequer causou.

E, na realidade, se virar amor, se virarmos amor, você provavelmente irá quebrar meu coração. Eu provavelmente partirei o seu em pedacinhos. Sendo realista – e talvez um pouquinho otimista –, é certo que, ao longo da vida, iremos quebrar o coração um do outro, inúmeras vezes.

Pensamos que, sob o manto protetivo dos corações não partidos, estamos livres do sofrimento. Que estamos livres de qualquer dor. Mas apenas estaríamos livres do amor.

Se jamais estivéssemos suscetíveis a ter nossos corações partidos um pelo outro, simplesmente significaria que não é e nunca foi amor. Por isso, não sendo uma carta de amor, eu te digo que espero, um dia, podermos nos entregar juntos à nossa vulnerabilidade, mesmo que isso signifique que quebraremos os corações um do outro ocasionalmente.

Ainda, se essa fosse uma carta de amor, eu te juraria amor eterno. E desejaria em meu âmago que essa promessa fosse recíproca.

Mas como não é, eu não vou falar de eternidades. Eu vou te assegurar que, enquanto eu estiver ao seu lado, eu serei fiel e verdadeira. Mas, principalmente, vou jurar sempre ser honesta com você. Mesmo quando for difícil, ou quando a verdade for o nosso pior obstáculo a enfrentar. Lembre-se de que nunca vou exigir promessas vazias quanto ao futuro incerto, tampouco irei fazê-las. Somente espero poder contar sempre com a sua honestidade, sem floreios, sem segredos e sem enganos.

Se essa fosse uma carta de amor, eu teceria inúmeros comentários sobre sua perfeição. Sobre você ser o homem que pedi a Deus. E, dizendo essas palavras, acreditaria que nosso relacionamento é completamente isento de defeitos.

Lembre-se, contudo, que essa não é uma carta de amor. Então não irei te idealizar. Não irei reputar como perfeita nossa relação. Irei, sim, reconhecer que você tem defeitos. Assim como eu. Alguns que eu julgo toleráveis, outros que de fato me agradam. Mas reconheço que todos são indispensáveis à nossa essência, então não quero ignorá-los. Quero honrá-los, podendo ser grata por ser exatamente como sou e te permitindo ser exatamente como você é.

E, embora nosso relacionamento não seja perfeito, sei que nos empenharemos quando encontrarmos percalços pelo caminho, ao invés de fugirmos de embates na tentativa de manter um falso status de perfeição.

Talvez tenha começado a ficar meio extensa, mas ainda não é uma carta de amor. Numa carta de amor, eu diria que preciso de você. Para viver, para ser feliz.

Como não é uma carta de amor, eu serei sincera e direi: não preciso de você. Não mesmo.

Mas eu te quero. Eu te quero tanto que sei que continuarei te escolhendo todos os dias. Mesmo quando eu ficar na dúvida. Mesmo quando te amar for um pouco difícil. Mesmo se porventura eu me deparar com outras opções. Enquanto você continuar me escolhendo, eu vou escolher te querer também.

Veja: se eu precisasse de você, eu seria impulsionada a ficar ao seu lado mesmo sem querer, por pura necessidade. Tendo a possibilidade de escolha, somos livres para escolhermos quem quisermos. E, se por um feliz acaso, escolhermos um ao outro, essa escolha será ainda mais bela, eis que fruto da liberdade.

Apesar de não ser uma carta de amor, eu sei que terão dias no futuro em que veremos amor em tudo. Dias em que, apaixonados, acreditaremos em corações intactos, juras eternas e imperfeições ilusórias. Dias em que, talvez, a magia do amor estará tão presente que deixaremos o realismo para depois. Tomara.

Eu só espero que a gente nunca se esqueça que o amor não é teoria. O amor é prática. Que sempre exige esforço, disposição, vontade e companheirismo.

Espero que lembremos que o amor está sempre presente, não só nos momentos românticos, mas principalmente nos pequenos gestos e atitudes, nos cuidados sutis e nas escolhas conscientes.

Espero que a gente lembre o seguinte: praticar o amor nunca será fácil. Mas sempre valerá a pena.

Por isso é desnecessário escrever sobre o amor.

Necessário mesmo é vivê-lo.

Vamos?

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Victória Pereira Martins
03/06/2019

terça-feira, 9 de junho de 2015

Memórias de um romance esquecido

Recebi aquela ligação com as mãos trêmulas. Só de ler seu nome no visor do meu celular já me dava calafrios. A verdade é que eu passara meses esperando saber dele, esperando receber notícias suas. E ver aquele nome enquanto o celular vibrava contra as minhas palmas acalmava minha mente ao mesmo tempo em que acelerava meu coração. Ou acalmava meu coração enquanto confundia meus pensamentos. Não tenho certeza. Só sei que, depois de tanto tempo esperando aquele telefonema, ele parecia um tanto quanto irreal. Então foi assim que eu me senti.

Deslizei o dedo para atendê-lo, no mesmo momento em que levantava da minha mesa, para não incomodar as outras pessoas no escritório. Caminhei até o corredor e pareceu durar uma eternidade o intervalo entre colocar o telefone no ouvido e dizer “alô”.

“Alô”, eu disse, e imediatamente me arrependi de ter soado duvidosa. Acho que eu esperava que fosse apenas uma coincidência, uma ligação por engano, ou, pior, uma brincadeira de muito mau gosto.

“Oi!”, ele respondeu, alegre. “Como você está?”

Fiquei tão perplexa, que a minha demora fez com que ele não aguardasse a resposta. E continuou a falar, como se, no fundo, ele não se importasse como eu estava me sentindo.

“Estou ligando porque tenho boas notícias. Demorou para me retornarem, mas eu consegui o emprego. Acho que agora seremos colegas de profissão”.

Respirei fundo, em uma mistura de alívio e desespero. Eu havia esperado por isso tanto tempo, imaginando que, talvez, a admissão dele no meu escritório nos reaproximasse, mas agora já não tinha tanta certeza. Talvez a convivência diária com ele só serviria para me lembrar da semana que passamos juntos. Uma semana que eu tentava esquecer.

“Parabéns”, respondi, com sinceridade. “Eu sabia que conseguiria. Quando você começa?”

Eu que o havia indicado àquela posição na empresa. Quando ainda éramos amigos, e não estranhos conhecidos. Antes de tudo se tornar o caos em que eu me colocara. Lembrei da época em que as coisas eram simples, em que conversar com ele era tão fácil, porque eu não procurava sinais em suas palavras, e tampouco policiava as minhas, com medo de parecer insinuações. Uma época antes de complicar tudo com sexo e sentimentos. Esses últimos só da minha parte, porque, se ele compartilhasse o que eu sentia, as coisas seriam bem mais simples.

Ele me respondeu que começaria na semana seguinte, e, depois de breves despedidas, desliguei o telefone. Eu sabia que aquilo era o máximo que escutaria dele naquela semana. Pelo menos até ele começar a trabalhar no mesmo escritório, no andar debaixo.

Apesar da distância física, trabalharíamos no mesmo prédio e aquilo me desconcertava. Eu não sabia como lidaria com a proximidade de uma pessoa que eu me esforçava tanto para esquecer. Ainda doía lembrar da boca dele sobre a minha, de nossas pernas entrelaçadas naquela noite gelada, enquanto ele, tão gentilmente, me possuía e sussurrava palavras carinhosas. Ainda me perseguiam os pensamentos das manhãs em que acordamos juntos e ele me abraçou na cama como se eu fosse o que mais importava para ele naquele momento. Eu ainda conseguia sentir o ponto da minha testa que ele beijara com tanta ternura ao se despedir. E o pior de tudo era saber que, mesmo depois de uma semana maravilhosa, de tanta intimidade e atenção, ele havia preferido desaparecer no mundo e me deixar indagando o que eu fizera de errado. Demorou tempo até demais para eu perceber que a única culpa que eu tinha era a de querer compartilhar a minha vida com alguém que só queria compartilhar orgasmos.

Depois de uma semana muito demorada, chegou o dia em que ele começaria a trabalhar no escritório. Escolhi minha melhor roupa e arrumei meu cabelo da melhor maneira possível. Se eu o encontrasse, apenas gostaria que ele se questionasse do porquê me deixou partir, apesar de saber que esses devaneios não o assombrariam.

Quando cheguei no prédio, ele aguardava na sala de espera. Alto, de terno, com o mesmo olhar intenso com que ele me encarara nas nossas noites de intimidade. Caminhei até ele e ele levantou os olhos do celular.

“Olá”, disse, com um abraço. “Bem-vindo!”

Ele sorriu, agradecido.

“Obrigada”, respondeu, e me olhou demoradamente, sem dizer se eu estava bonita ou se era bom me ver.

“Enfim”, eu disse, quebrando o silêncio constrangedor, “se precisar de qualquer coisa, me fala, tá?”

Ele sorriu e agradeceu novamente, e eu o deixei sozinho para me dirigir à minha sala e focar no trabalho.

A semana passou e, algumas vezes, nos encontramos no elevador. Conversávamos amenidades. Eu perguntava como estava indo o emprego novo, e ele me respondia seca e brevemente.

As memórias daquela semana começaram a me perseguir cada vez mais. Das noites que passamos conversando, quando eu despi meu coração para ele, e não apenas meu corpo. Quando ele me contou de sua família e compartilhou seus planos para o futuro. Nós sabíamos tanto um do outro e, ao mesmo tempo, nada. Naqueles breves momentos em que nos víamos no elevador e conversávamos, dava a impressão que ele era uma outra pessoa. Que eu me apaixonara por alguém que não existia materialmente, que existia apenas na ideia que eu criara.

Eventualmente, não foram só as memórias que invadiam minha mente. Começaram a me consumir, também, as coisas que não aconteceram. A ligação que ele poderia ter feito depois da semana que passamos juntos. O jantar que poderíamos ter tido alguns dias depois. A festa na minha casa em que ele conheceria meus pais. A viagem que faríamos juntos no final do ano.

Aquela semana poderia ter sido só o começo da felicidade. Porém, foram apenas fragmentos de alegria e o prelúdio de uma vida nostálgica.

Como ele conseguia me ver todos os dias no elevador e não lembrar das noites que tivemos? O sexo foi maravilhoso, mas a conversa também. Será que só para mim era difícil encontrar alguém com quem o riso é natural, a convivência, leve, e o coração se sente em paz? Como poderíamos jogar aquilo no lixo?

Um dia, em uma sexta-feira, depois de uma semana árdua de trabalho, com muito estresse e pressão, entrei no elevador para ir para casa. Já passara muito do horário do expediente. O elevador parou no andar de baixo e as portas se abriram. Era ele. Com um olhar cansado, porém suave. Acho que ele tivera uma semana melhor que a minha.

Ele sorriu e me cumprimentou. Fiquei com vontade de olhar para ele e gritar: “o que eu fiz de errado? Por que você sumiu? Eu não sou boa o suficiente para você?”, mas apenas fiquei parada em meu canto enquanto ele entrava pelas portas.

E, então, quando as portas se fecharam, ele pegou na minha cintura e me puxou para si. Colocou os lábios sobre os meus e pressionou-os de uma maneira carinhosa e, ao mesmo tempo, sedutora. Deixei-me ser guiada por aquele beijo que durou segundos, enquanto o elevador deslizava pelos andares do prédio.

O movimento de descida pareceu muito como o chão desabando sob meus pés. E eu nada fiz - parecia que uma força magnética me impulsionava a beijá-lo, apesar de saber que, emocionalmente, aquilo me destruiria.

Minha mente foi invadida de tudo o que não vivemos. Todo o amor desperdiçado. O relacionamento que poderíamos ter tido, que eu tinha certeza de que valeria a pena. Todos os beijos roubados e abraços apertados. Todas as manhãs acordando ao seu lado. Todo o potencial que aquele beijo guardava… e tive medo dessas sensações me assombrarem para sempre.

Quando ouvimos o “bipe” do elevador chegando ao térreo, ele me soltou e, sem se despedir, saiu pelo corredor e para fora do prédio. Fiquei alguns momentos parada até conseguir processar aquele beijo. Eu sabia que havia sido algo isolado, e que, por mais que eu checasse meu celular pelo resto da noite, a mensagem ou a ligação nunca chegariam.

Eu não queria viver assim para sempre. Frustrando-me após demonstrações pontuais de afeto. Desejando sumir nos períodos em que ele sumia. Indagando o que eu fizera de errado, apesar de não poder atribuir a mim a culpa de sua indisponibilidade afetiva. Lágrimas escorreram do meu rosto e eu percebi que aquela era a conclusão de que eu precisava para uma história de amor tão breve.

Depois de alguns minutos absorta em meus devaneios, respirei fundo e comecei a caminhar até meu carro, enquanto a brisa gélida beijava meu rosto, e não mais o cortava.

Quando, segundos depois, meu celular começou a vibrar nas minhas palmas, não tremi, minhas pernas não vacilaram e meus olhos não se apressaram em olhar o visor. Apertei o botão de silenciar e pensei “chega”. Agora chega.


Victória Pereira Martins
07 e 09/06/2015

"There's no starting over
without finding closure..."

domingo, 23 de novembro de 2014

Relacionamentos no século XXI

Fiz uma conta no Tinder e deletei dois dias depois.

Eu sei, parece um pouco volúvel. Mas permita-se explicar.

Sempre fui contra esse tipo de coisa. Aliás, para ser mais específica, sempre fui contra qualquer site ou aplicativo que implicasse a procura de um relacionamento romântico.

Mesmo porque sempre relacionei o Tinder a pessoas que apenas estavam à procura de sexo ou envolvimentos sem significados.

E, bem, preciso admitir que, em determinado momento da minha vida, prometi pra mim mesma que jamais ingressaria no Tinder. Nunca mesmo. Porque não queria ser o tipo de pessoas que precisa disso para conhecer alguém.

É verdade o que dizem: não cuspa para o alto porque pode cair na testa.

Foi exatamente o que aconteceu comigo. Em um momento de muito álcool e carência – e, diga-se de passagem, pouco amor próprio – decidi que iria fazer uma conta no Tinder. Afinal, não estava saindo para bares e baladas a fim de conhecer gente nova: então, que mal ocorreria se eu o fizesse por esse meio?

Eu, recentemente (quer dizer, não tão recentemente assim), terminei um relacionamento e ainda não ingressei em um novo. Conhecidos e familiares estavam tentando me tranquilizar, dizendo que, sem dúvidas, eu conheceria o homem da minha vida no meu ambiente de trabalho (em que eu ainda não ingressei, porque ainda não me formei).

Voltando ao assunto, eu fiz uma conta no Tinder, porque não aguentava mais todos apostando suas fichas no meu futuro profissional. Dessa forma, quis demonstrar que eu poderia conhecer alguém de outra maneira, apesar de não sair para bares ou baladas com meus amigos – e que poderia muito bem conseguir um relacionamento decente antes de ingressar no mercado de trabalho.

Acredito que não é necessário dizer aos desavisados que o aplicativo é um tanto viciante. Pensei que seria capaz de criar uma conta e fechá-la se não achasse o conceito interessante, mas foi um pouco mais complexo do que pensei.

A primeira combinação (“match”) que obtive foi algo surpreendente. Saber que aquele homem que eu achara atraente também se sentia da mesma maneira a meu respeito foi algo sensacional. Afinal, esse tipo de “flerte” só era possível, anteriormente, para mim, em alguma balada que eu frequentasse. Ser capaz de fazer isso do sofá de casa era simplesmente maravilhoso.

Porém, os contras passaram a superar os pós. Notei que eu deveria tomar decisões de aprovar ou rejeitar uma pessoa com base apenas em seus atributos físicos. Isso não me incomodou no começo, visto que eu analisava minuciosamente as pessoas no instagram – quando disponíveis – para saber, pelo menos, o curso que faziam. Não que isso importava, mas, como a minha ideia nunca foi a de conseguir algo casual, me preocupava a formação do cara com quem eu tinha potencial para me relacionar.

Mas... isso começou a me incomodar. No primeiro dia, apenas pensei em quantas combinações eu seria capaz de fazer em um dia e, consequentemente, quantas pessoas novas eu poderia conhecer sem sair de casa. A partir do segundo dia, comecei a pensar que, do mesmo modo que eu estava julgando os outros perfis masculinos apenas pela sua beleza física, eles poderiam estar fazendo o mesmo comigo.

E, assim, eles não saberiam que eu curso Direito. Não saberiam que eu sou uma pessoa sensível, que chora ao final de filmes, mas que pode ser muito resistente nas horas que o demandam. Tampouco poderiam saber que eu toco piano, violão e gosto de cozinhar nas horas vagas, porque as minhas fotos de perfil apenas mostram os meus melhores “closes”, as fotografias em que acreditei estar mais apresentável.

Se eu conhecesse alguém aleatoriamente, fosse na balada ou no meio de trabalho, eu não iria querer mostrar o meu atributo físico mais apresentável, como faço na foto do meu perfil no Tinder. Gostaria de lhes mostrar como gosto de conversar, talvez até de madrugada, antes de decidir se quero ou não me relacionar com alguém.

Gostaria de contar-lhes sobre os dilemas que tive antes de sair de casa: porque tive dúvidas se usaria meu cabelo preso ou solto, muita ou pouca maquiagem, aquela saia ou aquela calça. Ou até mesmo se deveria sair de casa. Porque existe mais de um “close” que pode me deixar atraente (mas isso não depende da fotografia, e sim de quem vê a imagem).

Gostaria que a pessoa me conhecesse de verdade, ainda que minimamente, mas pele na pele, olho no olho, para que os encontros do século XXI não se resumam aos meus atributos físicos, ou às viagens que eu fiz, ou a qualquer outra coisa que apareça no meu perfil do Tinder. Porque eu sou muito mais do que uma foto bonita. E quero acreditar que, quando eu conhecer o homem certo – seja na balada, no meu ambiente de trabalho ou em um site de relacionamentos -, ele também seja.



Victória Pereira Martins
23/11/2014

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Outro dia

Olhei-me pelo retrovisor do carro e respirei fundo. Queria verificar se meus olhos acusavam os dias a fio que eu passara chorando. Felizmente, nenhum sinal. Eles estavam do jeito que eu imaginara: pintados de preto, transparecendo a minha alma frágil, porém determinada. Desci do carro na rua escura e me dirigi ao bar da esquina. Não era um boteco, mas também não era o bar mais sofisticado da região. Olhei em volta, para as pessoas que se aglomeravam do lado de fora para fumar e notei que, talvez, eu estivesse muito bem vestida perto delas. Dei uma ombros; afinal, não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento. Havia dirigido 40 quilômetros para chegar lá e não seria um exagero na vestimenta que me faria ceder.

Abri espaço por entre as pessoas conversando, animadas. Invejei-as. Gostaria de estar com o espírito animado também, fumando, dando risada e sem preocupações. No entanto, eu me sentia miserável. Quando entrei no bar, avistei Fábio, que estava me esperando em uma mesa pequena, com duas cadeiras, e olhava atento para o celular.

Caminhei em direção dele. Quando me aproximava, ele levantou os olhos para mim e pude notar que se surpreendeu com as minhas mudanças. A última vez que havíamos nos encontrado, eu não estava na melhor forma física. Agora, oito quilos mais magra e com mais confiança (embora, no momento, estivesse um pouco abalada), observei que Fabio aprovava a melhora no meu corpo e na minha personalidade.

Ele levantou e me abraçou longamente. Aproveitei cada segundo daquele abraço, porque era a primeira demonstração de afeto verdadeiro que eu desfrutava em dias. Enquanto me segurava, sussurrou no meu ouvido: "Como eu senti sua falta!" Fiquei sem reação. Eu também sentira sua falta, mas tinha medo de que verbalizar aquelas palavras pudesse implicar, para mim, um sentimento muito mais intenso do que pra ele. Quando o abraço se desfez, ele olhou para mim e eu sorri com sinceridade.

Sentamo-nos à mesa. Percebi que ele estava tomando um choppe. O garçom logo veio tirar meu pedido. Um vinho branco. Um Chardonnay chileno. Ainda que essa bebida trouxesse lembranças um pouco amargas para mim, era a única que eu realmente apreciava, sem me deixar demasiado alterada.

- Preciso admitir - Fabio tirou-me dos meus devaneios - que você está muito melhor do que eu poderia imaginar. Pela sua voz ao telefone - ele fez uma pausa, como se estivesse procurando as palavras certas para não me ferir -, achei que você fosse estar muito pior. Menos poderosa. Menos confiante.

Sorri.

- Você deveria saber, Fabio, que sou boa em esconder meus sentimentos. Aliás, não só saber, como lembrar - afirmei, fazendo alusão a um período em que morávamos na mesma cidade.

Ele sorriu e eu me derreti toda. Ele tinha aquele charme que apenas os pilotos têm. Embora Fabio fosse relativamente jovem para a profissão, ele já se tornara um piloto civil. Desde muito pequeno, ele já sabia que rumo seguiria na vida. E todos os seus planos, desde então, foram arquitetados de modo a realizar esse sonho. Cogitei que talvez fosse por isso que eu queria tanto me encontrar com ele. Porque ele era o contraste perfeito, ou melhor, o extremo oposto de uma pessoa que eu tentava, desesperadamente, tirar da minha cabeça, sem sucesso.

- Então me diz a verdade: como você está? - Fabio sabia o efeito que causava nas mulheres e, por isso, quando falou isso, demonstrando a maior preocupação comigo, segurou a minha mão. Eu me encolhi um pouco mas não desfiz o toque.

- Estou bem. - Menti. E ele me olhou como se soubesse que eu estava mentindo. - Ok, você venceu. Estou vivendo um dia de cada vez. Não é a coisa mais fácil do mundo terminar um noivado.

- Eu imagino - ele balançou a cabeça e sorriu. - Na verdade, não consigo imaginar. Você sabe que todos os meus relacionamentos foram curtos, então não sei o que é reaprender a viver sem uma pessoa.

Dei de ombros.

- No fundo - afirmei - é apenas um hábito, um vício, que tenho de perder. É como parar de fumar - e apontei para o maço de cigarros que estava em cima da mesa, estampando uma imagem de um indivíduo acamado com máquinas respiratórias.

Ele riu alto.

- Você está dizendo que terminar um noivado é igual parar de fumar? - parou por um instante e acrescentou - Parar de fumar é difícil pra cacete. Acredite, eu tentei.

- Terminar um noivado também. A única diferença é que, para parar de fumar, existem remédios. Para superar o fim de um relacionamento, não - falei, com pesar. - E eu também já tentei parar de fumar e consegui. Superar essa fase, eu não tenho tanta certeza.

- Ah, para de ser dramática - ele disse em um tom divertido, sem ser cruel. - Daqui a um mês, no máximo, você estará completamente revigorada. Estará sorrindo por aí, quem sabe namorando outro homem? - Ele sorriu ao dizer isso, como se estivesse me dando uma sugestão.

Embora fosse completamente tentador namorá-lo, não seria a mais esperta das ideias. Afinal, ele era um piloto da aviação civil. Viajava de lá para cá. Convivia com comissárias de bordos que pareciam modelos. Enfim, os motivos eram muitos. Mas, no fundo, eu sabia que eram apenas desculpas, porque eu não conseguiria suportar o pensamento de ficar com outro homem. Não ainda, pelo menos.

- Na verdade, quero dar um tempo dos homens - falei, depressa, e me ocorreu que uma pontada de decepção lhe cruzou a face, mas ele nada disse.

- Sabe o que me irrita? - Perguntei de súbito, sem dar margem a resposta. - Eu sempre achei que deveríamos ser cautelosos. Nós estávamos noivos, tudo bem, mas fazíamos planos para muito tempo à frente. Quando eu questionava esses planos, ele se ofendia e dizia que eu deveria ter fé em nós dois. Você acredita em uma coisa dessas?

Ele sorriu tristemente. Acho que estava com pena de mim. Eu não queria ser uma chorona patética, digna de pena. Não. Eu só estava desabafando. Por isso, dessa vez, eu que toquei por alguns segundos no braço dele, para ele perceber que eu não estava querendo dó. Eu apenas queria alguém que ouvisse.

- Essa viagem, por exemplo - prossegui, tirando duas passagens aéreas da minha bolsa, que joguei, delicadamente, em cima da mesa. - Compramos essa viagem há um ano, mais ou menos. Fizemos tantos planos sobre ela. E, quando faltavam apenas três semanas, ele simplesmente arrumou as malas e foi embora. Sem explicação. Sem mais nem menos. Sem me explicar o que eu havia feito de errado ou o que ele tinha feito: se era uma mais nova ou se ele só não me aguentava mais.

- Impossível - disse Fabio, querendo ser gentil, mas com sinceridade. - Quem se cansaria de você?

- É fácil para você dizer! Moramos a 40 quilômetros de distância um do outro.

Rimos alegremente e por algum tempo dessa afirmação, com a esperança de que o clima melancólico fosse quebrado. E por alguns minutos, realmente foi. Ele me contou de sua própria vida. Contou que recebera uma proposta para trabalhar na Europa e ficara tentado a fazê-lo, mas que receava sentir falta do Brasil e se sentir solitário. Fiquei feliz em ouvir e poder dar a minha opinião, porque, até o momento, só havíamos falado sobre mim. Eu, egoísta, não havia percebido que ele tinha os próprios dilemas para lidar.

Em um momento de silêncio entre nós, bati os olhos, novamente, nas passagens aéreas em cima da mesa. Comecei a falar de novo sobre o assunto, sentindo-me culpada no mesmo minuto.

- Sabe, Fábio - falei, cautelosamente. - Acho que, talvez, o motivo de eu querer te encontrar... - parei, pensando que talvez pudesse chateá-lo. - Claro que senti saudades suas. Você sempre foi um grande amigo e eu não poderia deixar de querer te encontrar para me ajudar a superar essa fase. - Ele percebeu minha preocupação, e, com um balanço de cabeça, tranquilizou-me para continuar o que estava falando. - Mas acho que, de alguma forma, meu subconsciente queria vir aqui porque estamos muito perto do aeroporto. Acho que estou me sentindo um pouco tentada a ir nessa viagem. Mas, não posso mentir para você: talvez, no fundo, eu tenha alguma esperança de que ele também esteja lá, sabe, me esperando na fila do embarque. Quão patética eu sou?

- Você não é nem um pouco patética, meu amor - ele disse, carinhosamente. - Inclusive, eu estranharia se você não houvesse cogitado isso ainda. É normal sentir esperanças. O que não é normal é viver delas.

Olhei para baixo e tomei um gole do meu vinho.

- Então, o que você quer dizer com isso? O que devo fazer? - Perguntei, porque, de certa forma, queria que alguma outra pessoa tomasse essa decisão por mim.

- Olha, na minha opinião - ele prosseguiu -, você deveria ir, sim, nessa viagem. Acho que vai te fazer bem. Quem sabe você não conheça gente nova? - Fez uma pausa e deixei ele continuar, porque percebi que ele não havia terminado. Sempre haveria o "mas". - Mas... acho que você não deve ir esperando encontrá-lo no aeroporto, ou na fila de embarque, ou dentro do avião. Do contrário, você vai sentir uma decepção atrás da outra e se sentirá ressentida. Dificilmente aproveitará a viagem.

Concordei com a cabeça. Eu sabia que ele tinha razão.

- E você? - Perguntei, sem pensar. - Não quer ir comigo?

- Adoraria, meu bem, mas você sabe que não posso largar os meus próprios voos - disse, com um risinho. Ele parou e me olhou como se fosse ficar muitos anos sem me ver. Depois, checou o relógio e me disse: - Acho melhor você ir andando, ou vai perder seu voo.

Levantei, abracei-o ainda com mais intensidade do que antes, e saí pela porta do bar, rumo à minha primeira aventura sozinha em muito tempo.

***

Na porta da minha casa, o homem que eu tentava, desesperadamente, esquecer, tocava a campainha. Ele tinha lágrimas nos olhos e flores nas mãos. Tocava a campainha com tanta força, que parecia tentar aliviar seu desespero no simples ato de apertar aquele botão. Ninguém atendia.

Então, ele entendeu com pesar: ninguém atende e ninguém vai atender. É tarde demais.



Victória Pereira Martins 25/04/2014

"Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas."

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Tempo (im)próprio

Combinamos de nos encontrar em um café no centro da cidade. Para não deixá-lo esperando, cheguei cedo. Eu vestia uma calça social branca, uma camisa azul escura e cabelos presos. Apesar de não precisar deles para enxergar, estava usando meus óculos de grau para parecer intelectual. Só eu sabia como aquele encontro era importante, porque poderia determinar meu futuro. Desci do carro com calma, querendo parecer dramática e caminhei vagarosamente até à entrada do café, com a esperança que ele chegasse junto comigo. Como isso não ocorreu, segurei minha bolsa e minhas anotações mais próximas ao meu corpo e entrei no local.

Escolhi duas poltronas no canto do estabelecimento, para que tivéssemos privacidade. Embora eu pudesse ter sentado no lugar onde as poltronas estavam dispostas uma em frente à outra, escolhi as que estavam lado a lado. Inventei uma desculpa para mim mesma, de que, se eu me sentasse ao lado dele, poderia mostrar-lhe melhor minhas anotações sem que nenhum de nós tivesse que virar o pescoço para fazê-lo.

Pedi um expresso duplo e olhei no relógio. Ainda faltavam alguns minutos para a hora avençada, por isso decidi reler meus manuscritos, em busca de alguma imperfeição passível de correção naquela hora. Não consegui me concentrar. Só pensava no homem que eu estava esperando, que provavelmente se despedia de sua mulher e filhos antes de sair de casa. O pensamento me enciumava e, ao perceber isso, enrubesci -- e fiquei zangada comigo mesma. Por que diabos eu teria ciúme de um homem casado? Se a resposta era desejo, tinha algo muito de errado comigo: eu sempre condenara esse tipo de comportamento.

Ouvi a porta do café se abrir e levantei a cabeça. Embora eu conhecesse meu editor de longa data, sua beleza ainda me impressionava: os cabelos penteados para trás, os olhos azuis, quase translúcidos, e uma postura que impunha respeito. Tanto que, embora não houvesse tanta diferença de idade entre nós, eu me sentia intimidada perto dele, como se ele tivesse autoridade sobre mim. Ele usava um terno preto listrado, impecável. Ao me ver, não sorriu, como costumava fazê-lo, mas simplesmente beijou-me a face e sentou-se na poltrona ao meu lado.

Sussurrei algumas palavras sobre o trânsito, esperando animá-lo e, invariavelmente, ver o seu sorriso contagiante. Entretanto, ele permaneceu sério. Fiquei entristecida diante de sua reação, mas esperei que ele fizesse seu pedido, enquanto o garçom trazia meu expresso, para falar de novo. Assim que ele redirecionou sua atenção a mim, comecei a falar sobre meus manuscritos, o projeto de meu novo livro e, como percebi, ele se esforçava para se concentrar. Não parei de falar por um minuto, mostrando-lhe as anotações, virando as páginas e olhando em seus olhos para buscar alguma expressão que demonstrasse seu desgosto ou interesse.

Abruptamente, ele segurou minhas mãos agitadas que gesticulavam. Calei-me imediatamente. Ele fechou os olhos por um instante e livrou-me do toque, deixando minhas mãos geladas e confusas.

Ao abrir os olhos, sussurrou: "Desculpe. Desculpe, não estou prestando atenção. Eu sei que você percebeu, desculpe. Estou tão envergonhado, me desculpe". Diante de todos os pedidos de perdão, foi a minha vez de segurar as suas mãos, para que ele parasse com tantas desculpas. A verdade é que me preocupou a sua fragilidade. Ele, tão superior, imperioso e forte, desculpava-se comigo sabe-se Deus lá por quê.

Arrisquei, sem soltar sua mão: "Calma. O que foi? Você está bem?!"

Ele desvencilhou-se do meu contato físico e cobriu o rosto com suas mãos por alguns segundos. Ao levantar a cabeça, seus olhos estavam levemente marejados em lágrimas, que começaram a escorrer pela sua face enquanto ele falava: "É a minha mulher. Ontem, encontrei-a com o meu melhor amigo. Eu nunca imaginei..." E suas palavras foram interrompidas pelo garçom que lhe trouxe seu pedido.

Fiquei perplexa. Seu choro cortou-me o coração. A minha vontade era abraçá-lo e dizer o quanto ele era maravilhoso, mas me contive. Apenas observei seus olhos chorosos e o peito de suas mãos que enxugavam as lágrimas.

Depois que o garçom deixou seu café, ele tomou um gole e me disse: "Desculpe-me esse momento de fraqueza. De volta ao trabalho".

Voltei a mostrar meus manuscritos para ele, mas percebi seus devaneios. Meu Deus, ele deveria estar muito magoado para desfazer-se assim na minha frente. Embora eu me compadecesse de seu sofrimento, só conseguia pensar em sua esposa. Que espécie de mulher faria isso com um homem tão maravilhoso? Eu, sonhando em tê-lo na minha cama e, ela, afastando-o para dar lugar a outro homem. Respirei fundo para expulsar esses pensamentos.

Ao fim dos nossos trabalhos, olhei no relógio. Era fim de tarde e o crepúsculo começava seu majestoso espetáculo.

Ele olhou para mim com o olhar mais penetrante de todos. Disse: "Olha, me desculpe mesmo por hoje. Não quis envolver você nessa história. É que tudo é muito recente, não consigo imaginar como vai ser voltar a ser solteiro".

"Eu te acho maravilhoso", falei, sem querer, muito rapidamente.

Ele me observou perplexo.

"Desculpe", completei, "é que não entendo como ela pôde fazer isso com você".

Ele sorriu. Abriu um sorriso triste, que, aos poucos, foi se transformando em um olhar sombrio, que dava, novamente, lugar às lágrimas. Oh, não. Eu o fizera chorar. Peguei suas mãos e o abracei com força.

"Ah, não chore, me desculpe", sussurrei, "não foi minha intenção fazê-lo chorar". Mas seu choro continuava, cada vez mais melancólico, embora estivesse bem discreto. Desfiz o abraço e olhei em seus olhos azuis, com uma cor ainda mais bonita por causa da água que escorria. Lutando contra o desejo que surgira do contato visual, repeti: "Você é maravilhoso. Não entendo como qualquer pessoa no mundo faria isso com você. Vai passar". E soprei-lhe um leve beijo na face.

Ele arregalou os olhos, surpresos com a minha intimidade. Entretanto, o choro havia cessado. Ele secou rapidamente os olhos e pressionou seus lábios contra os meus, de forma tão espontânea que eu mal tive tempo de fechar meus olhos. Quando me dei por mim, entreguei-me e desfrutei do momento, tentando saciar-me com seus lábios, que carregavam um gosto de café amargo. O beijo deve ter durado poucos instantes, ou muitos, mas, quando ele se afastou de mim, senti que não havia sido longo o bastante. Se tivesse durado para sempre não teria sido longo o suficiente, porque eu nunca me cansaria de beijá-lo.

"Desculpe-me", ele repetiu. "Isso foi totalmente inapropriado. E é injusto com você, também".

Queria discordar, dizer que eu estava completamente de acordo com a situação, que eu achava totalmente justo tudo o que estava acontecendo, porque finalmente eu o teria, mas me contentei em concordar com a cabeça. Depois de uns minutos de silêncio, ele sugeriu que fôssemos embora e remarcássemos para um dia em que ele não estivesse tão disperso. Assenti.

Ele caminhou comigo devagar e silenciosamente até meu carro, envoltos pela escuridão que se estendia pelas ruas. Fazia frio, então eu usei uma das minhas mãos para afagar o outro braço, deixando cair meus manuscritos no chão. Abaixei-me para pegá-los e ele se abaixou também. Enquanto eu apanhava as folhas espalhadas, comecei a praguejar, para minha mesma, para que ele percebesse que aquela situação que era injusta, e não aquela vivida momentos antes. Depois de recolher tudo, voltei a ficar em pé e fingi que nada tinha acontecido.

Ao chegar no meu carro, estendi-lhe a mão e disse: "Obrigada por tudo. Suas dicas sempre são muito úteis aos meus escritos".

Ele deu um passo a frente e dissolveu toda a minha seriedade quando pegou na minha cintura, sussurrou "Eu que agradeço" e voltou a me beijar. Dessa vez, o beijo foi mais passional, mais desesperado, mais intenso. Talvez vingança para a mulher dele? Eu não me importava. Não me importava de ser a vingança, o remédio ou apenas uma casualidade, eu aceitei.

Ele me afastou de novo, mas, dessa vez, para me questionar: "Está livre para um drinque agora?"

Assenti e pensei, esperançosa, que, talvez, eu não fosse vingança, remédio ou casualidade. Talvez eu fosse, simplesmente, um novo começo para ele.


Victória Pereira Martins
29/04/2013


Gostaria de agradecer ao WillAgner que, pelos comentários que fez aqui no blog, incentivou-me a voltar a escrever. Fiquei muito feliz pelos seus comentários e considerações e espero, do fundo do meu coração, que você continue visitando o blog. Prometo atualizá-lo mais, embora não possa fazê-lo com tanta frequência por causa da faculdade. Mas muito obrigada por despertar em mim a vontade de escrever de novo! Você deixou uma estranha muito feliz e fez com que ela recuperasse seus sonhos! =)