sexta-feira, 25 de abril de 2014

Outro dia

Olhei-me pelo retrovisor do carro e respirei fundo. Queria verificar se meus olhos acusavam os dias a fio que eu passara chorando. Felizmente, nenhum sinal. Eles estavam do jeito que eu imaginara: pintados de preto, transparecendo a minha alma frágil, porém determinada. Desci do carro na rua escura e me dirigi ao bar da esquina. Não era um boteco, mas também não era o bar mais sofisticado da região. Olhei em volta, para as pessoas que se aglomeravam do lado de fora para fumar e notei que, talvez, eu estivesse muito bem vestida perto delas. Dei uma ombros; afinal, não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento. Havia dirigido 40 quilômetros para chegar lá e não seria um exagero na vestimenta que me faria ceder.

Abri espaço por entre as pessoas conversando, animadas. Invejei-as. Gostaria de estar com o espírito animado também, fumando, dando risada e sem preocupações. No entanto, eu me sentia miserável. Quando entrei no bar, avistei Fábio, que estava me esperando em uma mesa pequena, com duas cadeiras, e olhava atento para o celular.

Caminhei em direção dele. Quando me aproximava, ele levantou os olhos para mim e pude notar que se surpreendeu com as minhas mudanças. A última vez que havíamos nos encontrado, eu não estava na melhor forma física. Agora, oito quilos mais magra e com mais confiança (embora, no momento, estivesse um pouco abalada), observei que Fabio aprovava a melhora no meu corpo e na minha personalidade.

Ele levantou e me abraçou longamente. Aproveitei cada segundo daquele abraço, porque era a primeira demonstração de afeto verdadeiro que eu desfrutava em dias. Enquanto me segurava, sussurrou no meu ouvido: "Como eu senti sua falta!" Fiquei sem reação. Eu também sentira sua falta, mas tinha medo de que verbalizar aquelas palavras pudesse implicar, para mim, um sentimento muito mais intenso do que pra ele. Quando o abraço se desfez, ele olhou para mim e eu sorri com sinceridade.

Sentamo-nos à mesa. Percebi que ele estava tomando um choppe. O garçom logo veio tirar meu pedido. Um vinho branco. Um Chardonnay chileno. Ainda que essa bebida trouxesse lembranças um pouco amargas para mim, era a única que eu realmente apreciava, sem me deixar demasiado alterada.

- Preciso admitir - Fabio tirou-me dos meus devaneios - que você está muito melhor do que eu poderia imaginar. Pela sua voz ao telefone - ele fez uma pausa, como se estivesse procurando as palavras certas para não me ferir -, achei que você fosse estar muito pior. Menos poderosa. Menos confiante.

Sorri.

- Você deveria saber, Fabio, que sou boa em esconder meus sentimentos. Aliás, não só saber, como lembrar - afirmei, fazendo alusão a um período em que morávamos na mesma cidade.

Ele sorriu e eu me derreti toda. Ele tinha aquele charme que apenas os pilotos têm. Embora Fabio fosse relativamente jovem para a profissão, ele já se tornara um piloto civil. Desde muito pequeno, ele já sabia que rumo seguiria na vida. E todos os seus planos, desde então, foram arquitetados de modo a realizar esse sonho. Cogitei que talvez fosse por isso que eu queria tanto me encontrar com ele. Porque ele era o contraste perfeito, ou melhor, o extremo oposto de uma pessoa que eu tentava, desesperadamente, tirar da minha cabeça, sem sucesso.

- Então me diz a verdade: como você está? - Fabio sabia o efeito que causava nas mulheres e, por isso, quando falou isso, demonstrando a maior preocupação comigo, segurou a minha mão. Eu me encolhi um pouco mas não desfiz o toque.

- Estou bem. - Menti. E ele me olhou como se soubesse que eu estava mentindo. - Ok, você venceu. Estou vivendo um dia de cada vez. Não é a coisa mais fácil do mundo terminar um noivado.

- Eu imagino - ele balançou a cabeça e sorriu. - Na verdade, não consigo imaginar. Você sabe que todos os meus relacionamentos foram curtos, então não sei o que é reaprender a viver sem uma pessoa.

Dei de ombros.

- No fundo - afirmei - é apenas um hábito, um vício, que tenho de perder. É como parar de fumar - e apontei para o maço de cigarros que estava em cima da mesa, estampando uma imagem de um indivíduo acamado com máquinas respiratórias.

Ele riu alto.

- Você está dizendo que terminar um noivado é igual parar de fumar? - parou por um instante e acrescentou - Parar de fumar é difícil pra cacete. Acredite, eu tentei.

- Terminar um noivado também. A única diferença é que, para parar de fumar, existem remédios. Para superar o fim de um relacionamento, não - falei, com pesar. - E eu também já tentei parar de fumar e consegui. Superar essa fase, eu não tenho tanta certeza.

- Ah, para de ser dramática - ele disse em um tom divertido, sem ser cruel. - Daqui a um mês, no máximo, você estará completamente revigorada. Estará sorrindo por aí, quem sabe namorando outro homem? - Ele sorriu ao dizer isso, como se estivesse me dando uma sugestão.

Embora fosse completamente tentador namorá-lo, não seria a mais esperta das ideias. Afinal, ele era um piloto da aviação civil. Viajava de lá para cá. Convivia com comissárias de bordos que pareciam modelos. Enfim, os motivos eram muitos. Mas, no fundo, eu sabia que eram apenas desculpas, porque eu não conseguiria suportar o pensamento de ficar com outro homem. Não ainda, pelo menos.

- Na verdade, quero dar um tempo dos homens - falei, depressa, e me ocorreu que uma pontada de decepção lhe cruzou a face, mas ele nada disse.

- Sabe o que me irrita? - Perguntei de súbito, sem dar margem a resposta. - Eu sempre achei que deveríamos ser cautelosos. Nós estávamos noivos, tudo bem, mas fazíamos planos para muito tempo à frente. Quando eu questionava esses planos, ele se ofendia e dizia que eu deveria ter fé em nós dois. Você acredita em uma coisa dessas?

Ele sorriu tristemente. Acho que estava com pena de mim. Eu não queria ser uma chorona patética, digna de pena. Não. Eu só estava desabafando. Por isso, dessa vez, eu que toquei por alguns segundos no braço dele, para ele perceber que eu não estava querendo dó. Eu apenas queria alguém que ouvisse.

- Essa viagem, por exemplo - prossegui, tirando duas passagens aéreas da minha bolsa, que joguei, delicadamente, em cima da mesa. - Compramos essa viagem há um ano, mais ou menos. Fizemos tantos planos sobre ela. E, quando faltavam apenas três semanas, ele simplesmente arrumou as malas e foi embora. Sem explicação. Sem mais nem menos. Sem me explicar o que eu havia feito de errado ou o que ele tinha feito: se era uma mais nova ou se ele só não me aguentava mais.

- Impossível - disse Fabio, querendo ser gentil, mas com sinceridade. - Quem se cansaria de você?

- É fácil para você dizer! Moramos a 40 quilômetros de distância um do outro.

Rimos alegremente e por algum tempo dessa afirmação, com a esperança de que o clima melancólico fosse quebrado. E por alguns minutos, realmente foi. Ele me contou de sua própria vida. Contou que recebera uma proposta para trabalhar na Europa e ficara tentado a fazê-lo, mas que receava sentir falta do Brasil e se sentir solitário. Fiquei feliz em ouvir e poder dar a minha opinião, porque, até o momento, só havíamos falado sobre mim. Eu, egoísta, não havia percebido que ele tinha os próprios dilemas para lidar.

Em um momento de silêncio entre nós, bati os olhos, novamente, nas passagens aéreas em cima da mesa. Comecei a falar de novo sobre o assunto, sentindo-me culpada no mesmo minuto.

- Sabe, Fábio - falei, cautelosamente. - Acho que, talvez, o motivo de eu querer te encontrar... - parei, pensando que talvez pudesse chateá-lo. - Claro que senti saudades suas. Você sempre foi um grande amigo e eu não poderia deixar de querer te encontrar para me ajudar a superar essa fase. - Ele percebeu minha preocupação, e, com um balanço de cabeça, tranquilizou-me para continuar o que estava falando. - Mas acho que, de alguma forma, meu subconsciente queria vir aqui porque estamos muito perto do aeroporto. Acho que estou me sentindo um pouco tentada a ir nessa viagem. Mas, não posso mentir para você: talvez, no fundo, eu tenha alguma esperança de que ele também esteja lá, sabe, me esperando na fila do embarque. Quão patética eu sou?

- Você não é nem um pouco patética, meu amor - ele disse, carinhosamente. - Inclusive, eu estranharia se você não houvesse cogitado isso ainda. É normal sentir esperanças. O que não é normal é viver delas.

Olhei para baixo e tomei um gole do meu vinho.

- Então, o que você quer dizer com isso? O que devo fazer? - Perguntei, porque, de certa forma, queria que alguma outra pessoa tomasse essa decisão por mim.

- Olha, na minha opinião - ele prosseguiu -, você deveria ir, sim, nessa viagem. Acho que vai te fazer bem. Quem sabe você não conheça gente nova? - Fez uma pausa e deixei ele continuar, porque percebi que ele não havia terminado. Sempre haveria o "mas". - Mas... acho que você não deve ir esperando encontrá-lo no aeroporto, ou na fila de embarque, ou dentro do avião. Do contrário, você vai sentir uma decepção atrás da outra e se sentirá ressentida. Dificilmente aproveitará a viagem.

Concordei com a cabeça. Eu sabia que ele tinha razão.

- E você? - Perguntei, sem pensar. - Não quer ir comigo?

- Adoraria, meu bem, mas você sabe que não posso largar os meus próprios voos - disse, com um risinho. Ele parou e me olhou como se fosse ficar muitos anos sem me ver. Depois, checou o relógio e me disse: - Acho melhor você ir andando, ou vai perder seu voo.

Levantei, abracei-o ainda com mais intensidade do que antes, e saí pela porta do bar, rumo à minha primeira aventura sozinha em muito tempo.

***

Na porta da minha casa, o homem que eu tentava, desesperadamente, esquecer, tocava a campainha. Ele tinha lágrimas nos olhos e flores nas mãos. Tocava a campainha com tanta força, que parecia tentar aliviar seu desespero no simples ato de apertar aquele botão. Ninguém atendia.

Então, ele entendeu com pesar: ninguém atende e ninguém vai atender. É tarde demais.



Victória Pereira Martins 25/04/2014

"Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas."