Toquei o interfone enquanto observava, distraída, o movimento da rua. Poucos carros transitavam àquela hora e o restaurante japonês do outro lado da calçada já estava com o movimento diminuto. Na rua pouco iluminada, puxei minha jaqueta mais próxima ao meu corpo, de modo a cobrir meu colo desnudo, protegendo-me do vento gélido que soprou sem aviso.
Enquanto uma das mãos segurava a jaqueta, a outra segurava uma garrafa pesada de vinho tinto. Eu a segurava com força, temendo que seu peso fizesse com que a garrafa sucumbisse ao chão. Na realidade, eu havia escolhido esse vinho com tanto esforço e minúcia, que eventualmente perdê-lo de uma forma trágica seria equivalente à uma premonição de que aquela noite também ruiria.
Eu estava trajando um vestido florido e decotado, que destacava majestosamente as curvas de meu corpo, fazendo-me esquecer que sua aparência não me agradava tanto quando estava despida. Sacudi a cabeça para afastar os pensamentos de que aquele vestido não poderia disfarçar minhas várias imperfeições quando caísse, amassado, no chão do apartamento do Rafael.
Afastando-se de meus devaneios, uma voz feminina veio do interfone, saudando-me, e fazendo-me informá-la meu destino: “apartamento 81”. Poucos segundos depois, ouvi o portão destrancar e empurrei-o com força para permitir minha entrada.
Nesse momento, passei a desempossar um pouco da tamanha coragem que me envolvera ao aceitar aquele convite. Afinal, eu e o Rafael mal nos conhecíamos. Quando ele me chamara para ir à sua casa e “tomar uma taça de vinho”, eu aceitei sem pestanejar. Mas, agora, caminhando até o elevador, eu questionava se havia sido a melhor decisão.
A primeira e única vez que nos encontramos havia sido por um amigo em comum, que nos apresentara durante uma festa. Confesso que não conseguia me lembrar daquele dia com nitidez, talvez por culpa dos muitos drinks que alegremente traguei, talvez em virtude do entorpecimento que senti ao ver o sorriso do Rafael.
Era um sorriso que não guardava lascívia ou até mesmo segundas intenções. Era um sorriso de quem aparentava estar genuinamente feliz em me conhecer. E, associado ao seu entusiasmo e energia positiva, aquele era simplesmente o melhor sorriso que eu já presenciara.
Tanto que, hoje, olhar em retrospecto para esse momento é como vislumbrar a cena de um filme: ele e seu sorrido em destaque, enquanto todo o resto à sua volta em desfoque.
Acho que por isso comecei a fraquejar ao entrar no elevador para subir ao seu apartamento. O nosso primeiro encontro parecia tão mágico, que só a ideia de o macular com um segundo encontro fracassado me causava arrepios.
Além disso, mesmo com um único e breve encontro prévio, o Rafael havia encontrado um jeito de penetrar na minha mente como se fosse goma de mascar. Por alguma razão que eu ainda não compreendia, eu havia passado os dias que se seguiram àquela festa fantasiando com a nossa próxima interação. E eu, que sempre fora fria e alheia aos encantos masculinos, vi-me completamente vulnerável por um homem de quem pouco sabia.
Após apertar o botão do 8º andar, notei o quanto as minhas pernas estavam bambas e desejei que o elevador ascendesse vagarosamente, para que eu pudesse retomar a minha compostura. Mas o tempo parece ter vontade própria, principalmente quando desejamos que ele seja mais lento ou mais célere e, antes que eu pudesse me dar conta, o elevador apitou anunciando o andar selecionado, abrindo suas portas para a minha próxima aventura.
Bati à sua porta com suavidade, sem querer provocar um barulho muito alto, e imediatamente me arrependendo pela possibilidade de causar-lhe a impressão de ser muito tímida.
Segundos se passaram nos quais eu só conseguia ouvir o som da minha própria respiração. Cogitei bater mais uma vez, mas antes que eu pudesse fazê-lo, notei que do outro lado as chaves giravam no fecho para destrancar a porta. Segurei a minha respiração, sentindo-me patética por estar tão nervosa e apreensiva por um simples encontro com um (quase) desconhecido.
Meus pensamentos eram tão pronunciados, tão palpáveis, que a mim parecia que pairavam sobre o ar.
E, então, no momento em que Rafael abriu a porta, esses pensamentos simplesmente caíram ao chão, com um baque surdo apenas existente na minha lembrança.
Seu sorriso era exatamente como eu lembrava: amplo, com dentes perfeitos e expressivo de seu entusiasmo. Embora comumente se diga que os olhos são as janelas para a alma, para mim, em Rafael, era seu sorriso.
“Olá”, ele me saudou. “Que bom que você veio!”, acrescentou. E me abraçou.
Não apenas em seu sorriso residia a sua vivacidade, mas também em suas palavras e na forma como me abraçou tão ternamente, demonstrando ser possível ser a própria personificação de seus sentimentos.
Retribuí o abraço e o cumprimento, tentando soar tão feliz quanto ele soava e buscando aparentar o menos nervosa possível.
Entramos.
“Ah, desculpe a bagunça”, ele se justificou despretensiosamente. “Faz pouco tempo que me mudei, então ainda estou colocando as coisas em ordem”.
Olhei à minha volta e, de fato, o apartamento era um pouco bagunçado. Havia uma mesa no canto, com alguns pertences desordenados, um computador fora de uso e um quebra-cabeça montado, com uma única peça faltando. Algumas mochilas jaziam esquecidas no chão embaixo da escrivaninha, junto a quadros que certamente esperavam para serem pendurados.
“Ah, não se preocupe! Não está nada bagunçado”, menti, sorridente. “Trouxe um vinho para nós!”, emendei para ele não perceber a minha mentira e entreguei-lhe a garrafa de vinho, aliviada por não tê-la quebrado no trajeto.
Ele pegou a garrafa e convidou-me para nos sentarmos à mesa de jantar, onde já havia duas taças aguardando para serem preenchidas com o vinho tinto.
Fizemos um brinde e, ao tomar um gole, olhei fixamente nos olhos de Rafael, desejando que na verdade fosse sua boca a tocar meus lábios.
Ele elogiou o vinho e passamos a compartilhar amenidades. Seu jeito de conversar condizia perfeitamente com a energia que aquele sorriso sugeria, pois ele emendava diversos assuntos sem jamais deixar se instalar um silêncio constrangedor. Nenhum tópico era inalcançável para ele: além de aparentar saber um pouco de tudo, ele não se sentia constrangido com conversas mais profundas.
Assim, falamos sobre casamento e filhos. Ele os queria, tanto quanto eu.
Falamos sobre relacionamentos passados. Ele falou com carinho de uma antiga namorada e eu contei, com desgosto, a pior decepção romântica que eu já vivenciara.
Falamos de gostos musicais e experiências de vida.
Falamos do amigo em comum que nos apresentou.
Falamos do jantar que ele nos serviu, e que obviamente não saíra como o planejado. Tentei, sem soar arrogante, explicar-lhe onde ele provavelmente havia errado.
Falamos sobre tudo e sobre nada.
Falamos tanto até que paramos de falar, quando ele simplesmente levantou-se sem pronunciar qualquer palavra e, pousando a sua taça de vinho na mesa, ofereceu-me a sua mão, que eu prontamente segurei.
Ele sentou-se no sofá e eu me sentei ao seu lado. Gentilmente, ele ajeitou uma mecha de cabelo atrás de minha orelha e, aproveitando o movimento, puxou-me pela nuca e me beijou como eu jamais havia sido beijada antes. Não demorou muito para o beijo se tornar menos gentil e, antes que eu me desse conta, estava sentada de frente para ele, em seu colo, com minhas pernas sobre as suas.
O toque e o beijo tornavam-se cada vez mais quentes e, mesmo com o vento gélido que entrava pela janela aberta, parecia que fazia quarenta graus dentro daquele apartamento.
Ele se levantou, carregando-me em seus braços enquanto minhas pernas se enrolaram em volta de seu quadril e, poucos passos depois, me deitou na sua cama.
Despiu-me sem pressa e beijou cada centímetro do meu corpo enquanto o fazia, de modo que, quando ele me possuiu, eu já estava quase implorando por isso.
Por mais que eu tivesse fantasiado com esse momento inúmeras vezes, jamais seria capaz de imaginar tudo da forma como aconteceu. Não sei se foi porque tínhamos uma química indescritível, ou porque ninguém jamais fizera amor comigo com tanta vontade, mas lembro-me de pensar, enquanto me entregava ao Rafael, que eu sequer conhecera verdadeiramente uma conexão genuína antes.
Terminamos juntos, mas ele não se desvencilhou de mim depois de se satisfazer.
Pelo contrário: parecia que o contato físico e o carinho o satisfaziam na mesma medida do orgasmo sentido pouco antes.
Quando retomamos nossos fôlegos, ele soprou um beijo em meu pescoço e sussurrou, baixinho: “Posso fazer uma confissão?”
Assenti, dando risada, imaginando que sua revelação fosse algum comentário erótico.
Diversamente do que eu esperava, ele respirou fundo e respondeu, sério: “Eu estava sonhando com isso desde que nos conhecemos. Gostei de você no momento que te vi. Que sorriso! Que energia! Você é encantadora...”, e deixou suas palavras pairando no ar, com a maior naturalidade do mundo.
A sorte é que eu estava deitada de costas para ele, assim ele não conseguiu ver a expressão de choque que eu esbocei.
O meu sorriso o impressionara? Eu ocasionei devaneios nele da mesma maneira que ele os infligiu a mim? Será que ele também estava nervoso para o nosso encontro?
Passado o choque, sorri boba com a sua afirmação, julgando-me ingênua e talvez insegura demais por não ter cogitado que ele pudesse ter compartilhado os mesmos sentimentos que experimentei quando nos conhecemos.
“Sério?”, questionei, tentando parecer espontânea e nem um pouco surpresa. “Bom, ainda bem que tiramos essa fantasia da sua imaginação, né?”, declarei, decidida e brincalhona.
Ele me virou para ele e, com uma expressão tentadora, voltou a me beijar, rendendo-me completamente sob seu abraço, sem me oportunizar qualquer chance de saída. Não que eu quisesse sair daquele enlace. Talvez nunca mais.
Não sei quanto tempo durou nosso desfrute mútuo, mas passamos boa parte daquela madrugada sem conseguir tirar as mãos um do outro. Depois, embalamos em um sono afável: abraçados e entorpecidos.
Que noite memorável!
Tanto que, ainda hoje, lembro-me de tudo exatamente como aconteceu. E, agora, enquanto me sento no sofá para escrever as memórias daquela noite, tenho apenas uma certeza: o homem que está sentado ao meu lado ainda é o dono do melhor sorriso que eu já vi.
Victória Pereira Martins
23/03/2021
quarta-feira, 24 de março de 2021
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