segunda-feira, 22 de junho de 2009

Desertos

Ele sussurrou "adeus" e depois desapareceu na noite.

Por muito tempo, eu ainda fiquei observando aquela escuridão, esperando que ele ressurgisse do lugar onde havia desaparecido. Mas ele não voltou. Atentei meus ouvidos a quaisquer sinais de passos, mas o único som era o de minha respiração acelerada. Eu estava esperando acordar de um sonho terrível, desejava que a luz da manhã chegasse e apagasse aquelas palavras horríveis, aquela verdade absoluta e absurda que ele me contara. Porém, vencida pelo cansaço e pelo frio, decidi ir para casa. Meus pés deixavam marcas na neve, pegadas que aparentavam já estar lá havia muito tempo, e eu só as estava reforçando. Olhando para baixo, percebi que um fio de líquido escuro manchava a neve entre as pegadas de meus pés direito e esquerdo. Era sangue.

Eu não sentira nenhuma sensação desagradável anteriormente, mas ver o sangue me causou uma súbita e insuportável dor. Coloquei a mão entre minhas pernas e percebi que a minha calça já estava quase que enxarcada daquele líquido vermelho. Atravessei a rua com muito esforço e abri o carro com as mãos trêmulas. Eu não sabia se eu chegaria ao hospital, eu já perdera muito sangue, mas, esperançosa, liguei o carro e comecei a calcular a quantos quilômetros eu estava de lá. Minhas mãos manchadas daquela cor rubra sujavam o volante do carro enquanto eu dirigia sem conseguir atravessar linhas retas; eu imaginava o zigue-zague que minhas rodas faziam na neve. Peguei meu celular, jogado no banco passageiro, e disquei o número daquele homem que me amara por muitos anos de minha vida até alguns minutos antes, mas que me deixara desamparada naquela noite e se tornara um estranho. Ele não atendeu. Fiz mais algumas tentativas, todas frustradas. Então só consegui pensar em uma pessoa.

Ele se surpreendeu ao ouvir minha voz desesperada. Quis saber o que estava acontecendo, mas tudo o que eu consegui fazer no momento foi gemer de dor. O único som que saía da minha boca eram fragmentos da palavra "hospital". Fiz uma oração em silêncio, para que ele entendesse aquilo que eu tentava lhe dizer. A última coisa que eu desejava naquele momento era passar por todo aquele drama sozinha. O celular caiu de minhas mãos assim que eu parei na porta do hospital. Consegui sair do carro mas não ficar em pé. Caí de lado, tentando proteger minha barriga. Meu grito abafado de socorro foi o último som que eu ouvi antes da escuridão me invadir.

Acordei horas mais tarde. Estava ligada a máquinas que faziam um som de bipe de dois em dois segundos. Minha cabeça doía quando reparei que estava em trajes verdes de hospital. O dia começava a amanhecer, a claridade invadindo o quarto por entre as cortinas finas. Demorei um tempo para lembrar de tudo que acontecera na noite anterior, e antes de recobrar totalmente minha memória, uma enfermeira entrou no quarto.

"Dormiu bem?", ela me perguntou. Acenei com a cabeça. Não consegui pronunciar uma palavra, devido a várias doses físicas e emocionais misturadas.

"Bom, senhora...", ela começou. Eu não queria ouvir o que ela tinha para dizer, então só olhei pela janela. Mas ela continuou. "Sinto lhe informar, nós fizemos tudo o que podíamos para salvar seu bebê, mas... ele era muito frágil, com poucas semanas de vida". Fechei meus olhos e concordei com a cabeça novamente. Ouvi que ela caminhava para a porta, mas ainda não quis abrir meus olhos. Queria mantê-los fechados pelo resto da vida. Ao abrir a porta, ela ainda disse: "Quase me esqueci. Você tem uma visita, é um homem que não quis informar o grau de parentesco entre vocês. Posso mandá-lo entrar?" Afirmei com a cabeça pela terceira vez. Ela murmurou algo e finalmente saiu do quarto. Lágrimas começaram a escorrer por entre meus olhos cerrados, descendo lentamente pela minha face.

Ouvi batidas na porta. Esperei em silêncio, mas decidi abrir meus olhos. Era ele. Fazia algumas semanas que não nos víamos, desde que eu descobrira da gravidez. Ele estava lindo como sempre, mas não consegui sentir nada naquele minuto. Enquanto caminhava lentamente até a cama onde eu estava deitada, percebi que algumas lágrimas se formavam no canto de seus olhos também. Ele me olhou tristemente e pegou a minha mão. "Sinto muito", ele sussurrou. Fiz um certo esforço para ouvi-lo. "Era meu também, não era?" Suspirei fundo e lhe disse que sim. Ele colocou a mão em minha barriga e começamos a chorar juntos.

"Ele sabe?" perguntou depois de um certo tempo.

"Ele me deixou" respondi, perplexa com a falta de emoção que eu colocara na frase. Ao ver a confusão em seu rosto, compreendi que a sentença necessitava de uma explicação. "Ele é estéril", completei, e enquanto o eco das palavras da noite passada inundavam minha memória, o homem ao meu lado beijava minha testa.


Victória Pereira Martins
24/06/2009

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