Assisti à sua partida sem pesar. Ele se virou, após beijar ternamente minha bochecha esquerda, e caminhou até a outra. É estranho referir-me àquela mulher como “a outra” porque, afinal, ela fora escolhida. Sempre pensei que “a outra” era aquela deixada de lado, consumida pela fadiga das palavras falsas do homem amado, cujas promessas de abandonar a oficial eram cínicas e vãs. Percebi, no momento em que ambos caminhavam de mãos dadas, que fora eu quem ele havia enganado. Mas sem pesar. Sem ressentimentos. As palavras saíram duras daquela boca que eu tanto gostava de beijar, mordiscar ou simplesmente observar o movimento enquanto ele falava. Naquele dia, observei-a indiferente. Não senti prazer, admiração, tristeza nem sequer desprezo. Não senti nada. Forcei meus olhos a derrubarem algumas lágrimas mas eles se recusaram. Tentei sucumbir ao chão, espernear, implorar para ele voltar mas meu corpo se negou a me obedecer. Com uma percepção turva, compreendi que a única sensação ao vê-lo se afastar era de alívio. Eu queria aquilo.
Voltei para casa devagar. Repassando os últimos três anos em minha mente, indaguei-me se eu realmente amara o homem ao meu lado durante todo aquele tempo. Bem, ele estivera ao meu lado durante dois anos. O último ano não poderia ser considerado uma relação. Suas acusações eram verdadeiras. Eu mal parava em casa. Trabalhava demais, dedicava-me à clínica mais do que uma pessoa seria emocionalmente capaz. Por isso não o culpei. Ele merecia alguém que o amasse intensamente e eu nunca dera isso a ele. Quem sabe a outra – ou melhor, a oficial – poderia fazê-lo feliz dali em diante.
Ainda faltavam alguns quarteirões para chegar ao meu apartamento quando começou a chover. Não corri, não me apressei. Ao invés disso, entrei em uma loja alguns metros adiante. Eram cinco horas da tarde da véspera do ano novo e surpreendeu-me que ainda estivesse aberta. Comprei vinhos, queijos e outros aperitivos. Nada de festas esse ano. Nada de champagne, risos, contagem regressiva, beijos, abraços e sexo ébrio às seis horas da manhã. Nada de comemorações. Mas também, nada de pesar pelo ano que passara. Valera a pena. Era hora do recomeço.
Esperei a chuva torrencial amenizar sua fúria. Demorou cinco minutos. Continuei a caminhar com as compras na mão e gotas de água pingando das pontas de meu cabelo. A chuva molhava meu rosto, substituindo as lágrimas que tardavam a cair. Talvez o céu chorasse por mim, pensei. Ou, pelo menos, ajudava a manipular uma dor inexistente em meu interior.
Finalmente acabou a caminhada. Peguei as escadas ao invés do elevador. Eram sete andares, mas a intenção era mesmo parar de sentir minhas pernas. Quantas mais partes eu deixasse de setir, melhor. Terminei de subir o último lance de degraus e deparei-me com um vulto em frente a porta de meu apartamento. Ele virou-se e eu o reconheci na hora. Era um de meus pacientes. Como diabos ele sabia onde eu morava? Eu trabalhava em uma clínica psiquiátrica e ele era um de meus pacientes transitórios, ou seja, não internado. Olhei para ele e abri a boca para perguntar o que fazia ali, mas ele começou a chorar. Tentei confortá-lo e descobrir o que acontecia mas o choro era incessável. Abri a porta e convidei-o a entrar. Ele desabou no sofá enquanto eu pegava água para acalmá-lo. Sentei-me ao seu lado. Ele tomou alguns goles e pareceu ter engolido o desespero também. Perguntei-lhe o que ocorrera.
“Doutora, é a minha mulher. Ela me deixou. Disse que tem outro há um ano. E hoje – justo hoje! – me abandonou. Perguntei quem era o desgraçado, qual era seu nome, onde morava. Ela me disse que ele costumava morar nesse prédio mas que se mudaria hoje. Vim atrás dele. Encontrar a senhora aqui foi uma surpresa. Mas não foi coincidência, foi?”
Balancei a cabeça em negação. Seu choro soluçante começou de novo quando ele percebeu a situação infeliz. Queria poder ajudá-lo mas ele não me deixou falar. Era um paciente com princípios de depressão. Assustava-me o que ele poderia fazer se encontrasse quem fora procurar. Assustava-me, principalmente, o que ele poderia fazer consigo mesmo. Abracei-o e o mantive entrelaçado em meus braços enquanto ele se queixava de sua mulher, do amante, de todos no mundo. Queixava-se de sua existência e daquela data ridícula. Apertei-o com mais força e lhe disse que aquela data não era ridícula. Era um recomeço para todos nós.
Isso o acalmou por alguns instantes. Talvez não houvesse mesmo comemoração. Enquanto uns riam, outros choravam. Porém não havia dúvidas de que, para todos, seria um recomeço. Recomeços vêm com novas oportunidades. Mas para existirem recomeços, precisam existir finais. Repeti essas palavras em voz alta para o meu paciente, que lentamente adormecia em meu sofá.
Victória Pereira Martins
29/12/2009
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