segunda-feira, 5 de maio de 2008

Biblioteca qualquer

A menina, sentada ereta na cadeira móvel, rabiscava sem pressa algumas linhas de um novo romance. A história, mal organizada e inacabada, era redigida à mão. Sua autora olhava pela janela e não enxergava nada. Não por qualquer deficiência visual, mas simplesmente porque não queria ver. Bem, pelo menos não o que era real. Ela imaginava campos, praias, cidades, casas e lugares existentes somente nos textos de sua autoria. Por isso, seus olhos restringiam-se apenas àquele mundo cheio de cores e sensações, porém isento de uma pitada sequer de realidade.

Eis que em toda história que havia escrito até aquele momento, não obteve problema algum com imaginação ou criatividade. Porém, aquela era diferente. O chão sob seus pés estava inundado de papéis amassados e sem vida, e a menina temia se afogar naquela onda de insatisfação. A história estava clara em sua mente, e de algum modo ela não conseguia descrever todas aquelas idéias que estavam muito perto de transbordarem se não fossem socorridas por alguém que as pegasse e as tranferissem para o papel.

Depois de muito tentar, chegou à conclusão de que não chegaria a lugar algum. Decidiu dar algumas voltas para espairecer os pensamentos. Com um livro na mão e indiferença nos pés, sentou-se no banco de uma praça próxima à sua casa e devorou páginas intermináveis daquele romance favorito, cuja leitura era fascinante. Quando começou a escurecer, a menina já cansada refez o caminho que fizera mais cedo naquele mesmo dia. Foi quando avistou aquela criatura, que julgou a mais linda de todo o mundo. O menino tinha cabelos loiros, olhos castanhos e uma porção razoável de mistério que misturava-se à paisagem, impossibilitando saber se ele era real ou uma miragem.

A partir daquele dia, a menina andava diariamente por aquelas ruas de nomes desconhecidos, reconhecidas apenas pelo trotar das passadas ansiosas e intuitivas, as quais faziam com que ela procurasse o dono da silhueta mais fabulosa que jamais havia encontrado nos quatro cantos de qualquer biblioteca. À noite, ela se sentava ereta na cadeira móvel e escrevia todos os detalhes daquele primeiro encontro acidental.

Enfim, após dias procurando, a menina o encontrou sentado na praça, lendo aquele mesmo livro que ela, por incansáveis vezes, lera. Sentou-se ao seu lado. A primeira troca de olhares foi calma, desejável, seguida de risos envergonhados. Depois disso, tudo aconteceu muito rápido. Foram tantas tardes românticas daquele amor imaturo e inocente, que a menina não demorou em derramar toda aquela história sobre suas folhas de papel sem vida, transformando-as naquele romance cheio de cores e sensações sempre almejado. Porém, ela não sabia que fim dar ao enredo e decidiu deixar seu romance real prosseguir para poder encerrar o irreal.

Nos dias seguintes, quando foi se encontrar com o amado, teve uma surpresa: ninguém a esperava, a não ser a brisa fria que chegava junto com os crepúsculos. A princípio, pensou ser algum equívoco natural que ocorrera para ele não ir a seu encontro como fazia todos os dias. Quando o abandono começou a se tornar freqüente, a menina preocupou-se. Em uma das tardes mais frias daquele outono, ela decidiu ir à praça pela última vez, como alguns meses antes, a fim de procurar uma miragem. Nesse dia, ela levou o romance deles que ela havia escrito. Estava certa de que ele iria, para que ela pudesse mostrar as linhas tímidas e apaixonadas que decoravam todas aquelas páginas.

E mais uma vez, apenas o banco da praça lhe fez companhia. Escrava de memórias, lembrou-se de quando os dois tiveram o primeiro contato. Então, compreendeu. Mais uma vez, a menina olhava para o mundo e não enxergava nada. E por não querer ver, imaginou. Lacrimejando, ela abriu as folhas de papel amareladas, e, lendo as primeiras linhas, preparou-se para os próximos encontros com o ser mais misterioso de todos: sua mente.


Victória Pereira Martins
05/05/2008

2 comentários:

Anônimo disse...

Mudou o tema... =)

Bruno Sátiro de Souza disse...

Aquele menino, loiro e perfeito no qual a menina pensava que tinha imaginado tinha também sua história.
Ao seu pedaço de madeira ajoelhava-se e com um papel muitas vezes doados a ele escrevera aquilo que para ele não era feito de realidade. Para ele o paraiso não era como daquela menina no qual havia encontrado, era feito de boas refeições, de uma família feliz e principalmente de uma menina no qual, todos os dias fazia seu olho brilhar e de todo paraíso imaginado se tornar uma fria realidade.
Aos céus chegava na mesma velocidade que seu olhar timido e entristecido a encontrava. Mas como na história dela, um dia chegou na mesma praça no mesmo banco, que chamava de oásis, ele não a encontrara, mas sua história continuava, com os encontros de sua memória, com a fome sanada por conhecimento, amor e o frio aquecido pelo seu peito apaixonado.
E no outono, no mesmo dia, o ultimato final, a brisa que batera em seu rosto o tocou com qual delicadesa que, sentiu as mãos de sua menina percorrer seu corpo e os labios tocar sua boca, como o desejo de tê-la novamente era grande, mas este percebera que a uma dimensão diferente estava e que o mundo no qual encontravam-se desapareceu, sua vida voltou ao que já até esquecido tinha.
Mas as páginas doadas continuaram a serem preenchidas pelo grafite com cor de esperança, amor e saudade.


Adorei o texto, lindo mesmooo..