segunda-feira, 26 de maio de 2008

Do sétimo andar (I)

Liguei o chuveiro e deixei a água bater com força sobre mim. Fiquei uns bons minutos lá embaixo, com a intenção de que o banho não limpasse apenas meu corpo, mas a minha alma. O dia fatigante que eu tivera merecia toda a cerimônia dramática. A água que escorria sobre minha pele parecia uma letargia que se espalhava mais à medida que eu esfregava o sabonete fosco, fazendo com que a região ficasse vermelha, quase em carne viva. Quando o vapor começou a cessar, reduzi todo o jato a pequenas gotículas e as incentivei a pingarem em meu nariz, em meus cabelos emaranhados e em todo o caminho da minha vértebra, até chegarem às áreas mais íntimas, congelantes. Não preocupei-me em enrolar uma toalha sobre qualquer parte da minha estrutura encharcada e segui em direção a outros aposentos, nua, deixando um rastro sugestivo por onde eu passava.

Escolhi o melhor vinho de minha modesta adega e servi duas taças. Com uma em cada mão, fui cambaleante até a sala de estar, cujas portas envidraçadas permitiam uma visão nítida de todo o apartamento em frente ao meu. Indiferente à ausência de qualquer peça de roupa, sentei-me naquela gigantesca poltrona e tomei todo o conteúdo de uma das taças em um gole só, e em seguida pousei ambas em uma mesinha de cabeceira que eu estranhamente deixava na sala. Ao lado dos cálices, um grande binóculo aguardava ansioso o momento de entrar em contato com meus olhos famintos. Decidida a deixá-lo esperando mais alguns minutos, apaguei todas as luzes como forma de camuflagem e fui assistir a meu show noturno e diário.

Como o relógio denunciava apenas oito horas da noite, deduzi que o espetáculo havia começado cedo naquele dia. O homem careca de pele morena já despia a camisa quando eu penetrei em seu apartamento, intrusa. Em pé a sua frente, uma mulher de cabelos louros e estatura média o ajudava a fazer isso com mais rapidez, e parecia já estar gemendo de prazer só pelo gesto sutil. Depois de atirá-la na cama com hostilidade, ele despojou-a inteira com uma fome insaciável, tendo o cuidado de retirar suas peças íntimas com os dentes. Eu assisti àquilo com certa monotonia, já que o havia visto repetir aquelas manobras com outras mulheres, senhoras e até meninas. O único motivo pelo qual eu insistia em ver toda a sensualidade que envolvia o apartamento em frente ao meu era meu desejo de estar na pele de qualquer uma que ele já houvesse possuído.

Horas depois, quando a mulher já havia ido embora e ele estava deitado nu na cama, envolto por aquele frenesi solitário, agarrei minha câmera fotográfica. Nela estava toda a aspiração na qual eu nunca tivera coragem de investir. Eu mal sabia usar todas aquelas funções exuberantes que não me diziam nada, mas por detrás daquelas lentes, o mundo aparentava ser um pouco mais belo. Esperei até que ele olhasse acidentalmente para o lugar onde eu estava e consegui captar aquele olhar desconcertante. Fantasiei que talvez ele estivesse realmente me enxergando e, devoto, devorando cada centímetro do meu corpo excitado com aqueles olhos invasivos. Porém, um gesto repentino daquele homem interrompeu meus pensamentos. Ele abriu a gaveta de uma mesa próxima à sua cama e retirou lentamente algo lá de dentro. Com um close da câmera, consegui descobrir o que era. Quando o fiz, derrubei o aparelho fotográfico que estava em minhas mãos, e este caiu no chão. O baque surdo da queda abafou meu grito silencioso.


Victória Pereira Martins
05/07/2008

Parte II em breve ;)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Biblioteca qualquer

A menina, sentada ereta na cadeira móvel, rabiscava sem pressa algumas linhas de um novo romance. A história, mal organizada e inacabada, era redigida à mão. Sua autora olhava pela janela e não enxergava nada. Não por qualquer deficiência visual, mas simplesmente porque não queria ver. Bem, pelo menos não o que era real. Ela imaginava campos, praias, cidades, casas e lugares existentes somente nos textos de sua autoria. Por isso, seus olhos restringiam-se apenas àquele mundo cheio de cores e sensações, porém isento de uma pitada sequer de realidade.

Eis que em toda história que havia escrito até aquele momento, não obteve problema algum com imaginação ou criatividade. Porém, aquela era diferente. O chão sob seus pés estava inundado de papéis amassados e sem vida, e a menina temia se afogar naquela onda de insatisfação. A história estava clara em sua mente, e de algum modo ela não conseguia descrever todas aquelas idéias que estavam muito perto de transbordarem se não fossem socorridas por alguém que as pegasse e as tranferissem para o papel.

Depois de muito tentar, chegou à conclusão de que não chegaria a lugar algum. Decidiu dar algumas voltas para espairecer os pensamentos. Com um livro na mão e indiferença nos pés, sentou-se no banco de uma praça próxima à sua casa e devorou páginas intermináveis daquele romance favorito, cuja leitura era fascinante. Quando começou a escurecer, a menina já cansada refez o caminho que fizera mais cedo naquele mesmo dia. Foi quando avistou aquela criatura, que julgou a mais linda de todo o mundo. O menino tinha cabelos loiros, olhos castanhos e uma porção razoável de mistério que misturava-se à paisagem, impossibilitando saber se ele era real ou uma miragem.

A partir daquele dia, a menina andava diariamente por aquelas ruas de nomes desconhecidos, reconhecidas apenas pelo trotar das passadas ansiosas e intuitivas, as quais faziam com que ela procurasse o dono da silhueta mais fabulosa que jamais havia encontrado nos quatro cantos de qualquer biblioteca. À noite, ela se sentava ereta na cadeira móvel e escrevia todos os detalhes daquele primeiro encontro acidental.

Enfim, após dias procurando, a menina o encontrou sentado na praça, lendo aquele mesmo livro que ela, por incansáveis vezes, lera. Sentou-se ao seu lado. A primeira troca de olhares foi calma, desejável, seguida de risos envergonhados. Depois disso, tudo aconteceu muito rápido. Foram tantas tardes românticas daquele amor imaturo e inocente, que a menina não demorou em derramar toda aquela história sobre suas folhas de papel sem vida, transformando-as naquele romance cheio de cores e sensações sempre almejado. Porém, ela não sabia que fim dar ao enredo e decidiu deixar seu romance real prosseguir para poder encerrar o irreal.

Nos dias seguintes, quando foi se encontrar com o amado, teve uma surpresa: ninguém a esperava, a não ser a brisa fria que chegava junto com os crepúsculos. A princípio, pensou ser algum equívoco natural que ocorrera para ele não ir a seu encontro como fazia todos os dias. Quando o abandono começou a se tornar freqüente, a menina preocupou-se. Em uma das tardes mais frias daquele outono, ela decidiu ir à praça pela última vez, como alguns meses antes, a fim de procurar uma miragem. Nesse dia, ela levou o romance deles que ela havia escrito. Estava certa de que ele iria, para que ela pudesse mostrar as linhas tímidas e apaixonadas que decoravam todas aquelas páginas.

E mais uma vez, apenas o banco da praça lhe fez companhia. Escrava de memórias, lembrou-se de quando os dois tiveram o primeiro contato. Então, compreendeu. Mais uma vez, a menina olhava para o mundo e não enxergava nada. E por não querer ver, imaginou. Lacrimejando, ela abriu as folhas de papel amareladas, e, lendo as primeiras linhas, preparou-se para os próximos encontros com o ser mais misterioso de todos: sua mente.


Victória Pereira Martins
05/05/2008