terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Recomeço

Assisti à sua partida sem pesar. Ele se virou, após beijar ternamente minha bochecha esquerda, e caminhou até a outra. É estranho referir-me àquela mulher como “a outra” porque, afinal, ela fora escolhida. Sempre pensei que “a outra” era aquela deixada de lado, consumida pela fadiga das palavras falsas do homem amado, cujas promessas de abandonar a oficial eram cínicas e vãs. Percebi, no momento em que ambos caminhavam de mãos dadas, que fora eu quem ele havia enganado. Mas sem pesar. Sem ressentimentos. As palavras saíram duras daquela boca que eu tanto gostava de beijar, mordiscar ou simplesmente observar o movimento enquanto ele falava. Naquele dia, observei-a indiferente. Não senti prazer, admiração, tristeza nem sequer desprezo. Não senti nada. Forcei meus olhos a derrubarem algumas lágrimas mas eles se recusaram. Tentei sucumbir ao chão, espernear, implorar para ele voltar mas meu corpo se negou a me obedecer. Com uma percepção turva, compreendi que a única sensação ao vê-lo se afastar era de alívio. Eu queria aquilo.

Voltei para casa devagar. Repassando os últimos três anos em minha mente, indaguei-me se eu realmente amara o homem ao meu lado durante todo aquele tempo. Bem, ele estivera ao meu lado durante dois anos. O último ano não poderia ser considerado uma relação. Suas acusações eram verdadeiras. Eu mal parava em casa. Trabalhava demais, dedicava-me à clínica mais do que uma pessoa seria emocionalmente capaz. Por isso não o culpei. Ele merecia alguém que o amasse intensamente e eu nunca dera isso a ele. Quem sabe a outra – ou melhor, a oficial – poderia fazê-lo feliz dali em diante.

Ainda faltavam alguns quarteirões para chegar ao meu apartamento quando começou a chover. Não corri, não me apressei. Ao invés disso, entrei em uma loja alguns metros adiante. Eram cinco horas da tarde da véspera do ano novo e surpreendeu-me que ainda estivesse aberta. Comprei vinhos, queijos e outros aperitivos. Nada de festas esse ano. Nada de champagne, risos, contagem regressiva, beijos, abraços e sexo ébrio às seis horas da manhã. Nada de comemorações. Mas também, nada de pesar pelo ano que passara. Valera a pena. Era hora do recomeço.

Esperei a chuva torrencial amenizar sua fúria. Demorou cinco minutos. Continuei a caminhar com as compras na mão e gotas de água pingando das pontas de meu cabelo. A chuva molhava meu rosto, substituindo as lágrimas que tardavam a cair. Talvez o céu chorasse por mim, pensei. Ou, pelo menos, ajudava a manipular uma dor inexistente em meu interior.

Finalmente acabou a caminhada. Peguei as escadas ao invés do elevador. Eram sete andares, mas a intenção era mesmo parar de sentir minhas pernas. Quantas mais partes eu deixasse de setir, melhor. Terminei de subir o último lance de degraus e deparei-me com um vulto em frente a porta de meu apartamento. Ele virou-se e eu o reconheci na hora. Era um de meus pacientes. Como diabos ele sabia onde eu morava? Eu trabalhava em uma clínica psiquiátrica e ele era um de meus pacientes transitórios, ou seja, não internado. Olhei para ele e abri a boca para perguntar o que fazia ali, mas ele começou a chorar. Tentei confortá-lo e descobrir o que acontecia mas o choro era incessável. Abri a porta e convidei-o a entrar. Ele desabou no sofá enquanto eu pegava água para acalmá-lo. Sentei-me ao seu lado. Ele tomou alguns goles e pareceu ter engolido o desespero também. Perguntei-lhe o que ocorrera.

“Doutora, é a minha mulher. Ela me deixou. Disse que tem outro há um ano. E hoje – justo hoje! – me abandonou. Perguntei quem era o desgraçado, qual era seu nome, onde morava. Ela me disse que ele costumava morar nesse prédio mas que se mudaria hoje. Vim atrás dele. Encontrar a senhora aqui foi uma surpresa. Mas não foi coincidência, foi?”

Balancei a cabeça em negação. Seu choro soluçante começou de novo quando ele percebeu a situação infeliz. Queria poder ajudá-lo mas ele não me deixou falar. Era um paciente com princípios de depressão. Assustava-me o que ele poderia fazer se encontrasse quem fora procurar. Assustava-me, principalmente, o que ele poderia fazer consigo mesmo. Abracei-o e o mantive entrelaçado em meus braços enquanto ele se queixava de sua mulher, do amante, de todos no mundo. Queixava-se de sua existência e daquela data ridícula. Apertei-o com mais força e lhe disse que aquela data não era ridícula. Era um recomeço para todos nós.

Isso o acalmou por alguns instantes. Talvez não houvesse mesmo comemoração. Enquanto uns riam, outros choravam. Porém não havia dúvidas de que, para todos, seria um recomeço. Recomeços vêm com novas oportunidades. Mas para existirem recomeços, precisam existir finais. Repeti essas palavras em voz alta para o meu paciente, que lentamente adormecia em meu sofá.

Victória Pereira Martins

29/12/2009

domingo, 15 de novembro de 2009

Quando a alma não é pequena...

Não vou começar essa carta falando seu nome. Primeiro, porque nunca consegui pensar em um apelido bom o suficiente para você, alguma coisa que nos lembrasse de algum momento bom que passamos. Segundo, porque nós sempre pulamos essa parte. Raramente nos chamávamos pelo nome, acho que para evitar que a nossa relação se tornasse ou íntima ou formal demais. Algum dos dois, ainda não consegui decifrar.

Só lhe escrevo porque sinto-me estranha esses dias e tento me manter ocupada para não pensar tanto assim em você. É inútil: tudo aqui, todos os móveis da minha casa, cada pedaço do meu quarto me lembra você. Às vezes até sinto que você ainda está aqui, sentado em minha cama enquanto escrevo, olhando para a minha ingenuidade e rindo de minha pouca idade. Não tenho coragem de olhar para trás e encontrar a cama vazia, e ter a certeza de que você se foi e o pesar de que você não vai voltar. Mesmo tendo essas verdades, não consigo evitar ficar presa ao telefone, esperando um gesto de arrependimento, esperando que você mude de ideia. Mas quanto mais eu olho para ele, menos ele toca.

Tento imaginar o dia inteiro, por horas a fio, o que você estará fazendo. Não consigo deixar de indagar se você também sente minha falta. Na verdade, nem precisa ser saudade de mim, pode ser só saudade dos momentos bons que tivemos, das vezes em que apenas deitamos um ao lado do outro - sem pronunciar palavra - e gargalhamos ao som das músicas antigas saindo no canto do quarto. Por isso que olhar para o meu quarto me faz chorar: ele fica tão vazio, tão silencioso e tão escuro sem você. Então tento ir para outros aposentos, procuro outros lugares para esconder minha vulnerabilidade e não consigo. Seus fantasmas me perseguem, me assolam e entram em minha pele, fazendo rasgos e estragos até chegar ao meu coração, onde eles são mais impiedosos ainda. Odeio admitir que estou me acostumando com a presença deles aqui.

Meus poucos amigos que me restam me dizem para eu esquecer. Deitar e dormir por dias e não acordar até me sentir melhor. Tentei fazer isso, mas fiquei incontáveis minutos de olhos fechados e o sono não veio. E só de pensar que, no sonho você virá me assombrar, eu desisto. Tenho medo de não acordar mais, de querer ficar com você lá para sempre. Então tento comer, mas só o cheiro da comida me enoja. Tento estudar, mas só vejo seu rosto estampado em todas aquelas páginas, a sorrir para a minha tolice. Quero fugir, sair correndo e gritar, mas não tenho forças. Sinto-me impotente e não sei o que fazer. Não sei nem mais o que falar, até parece que estou tentando lhe persuadir ao expor meu sofrimento, mas não procuro por piedade, só procuro dizer o quanto você me faz falta. Por todas as vezes em que você achou que não valia tanto assim, acho que essa carta vai fazê-lo mudar de ideia, e encontrar alguém que se encaixe em você. Uma pessoa que lhe faça ver o quanto você é especial e que se sinta especial de estar ao seu lado.

Mas esporadicamente, quando os dias estiverem frios e a chuva bater na sua janela.. quando você estiver ao lado dela na cama, sem sussurros, beijos e suspiros.. quando tudo ficar sombrio e você lembrar do passado.. peço que se lembre de mim. Lembre das nossas gargalhadas, dos sussurros, dos beijos, dos suspiros, das discussões, das demonstrações públicas de afeto, das brigas, das conversas, de minha pouca idade... Lembre-se de todas aquelas vezes que eu tive vontade de lhe dizer algo e não disse, talvez por falta de coragem, às vezes para lhe deixar curioso. Saiba que se você estivesse aqui, eu lhe falaria tudo agora, tudo que está na minha mente, no meu coração, na nossa intimidade. E você não está. Então, por ora, só lhe digo que você faz falta.

Lembre-se também que alguém, não importa onde, por que ou como.. vai sempre pensar em você - esse alguém sou eu.
Cuide-se.

Sua pequena.


Victória Pereira Martins
15/11/2009

nothing is lost, it's just frozen in frost.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sombras

Embora a cama fosse velha, as juntas não rangiam. E nem teriam o porquê, já que eu apenas deitava com meus braços envoltos sobre o peito do homem que eu vira retornar à casa havia poucas horas. Ao vê-lo entrando pela porta, após os minutos de relutância, tentando negar o que meus olhos viam, desabei em prantos. Ele, naturalmente, colocou os braços em volta de mim. Beijando minha testa, disse que tudo estava bem, que ele iria cuidar de mim dali em diante. Agarrei-o com força, como que para provar que ele estava lá mesmo, para impedir que num piscar de olhos, alguém o tirasse de mim. Mas ele permaneceu me abraçando por intensos e longos minutos, até que, sem proferir palavra, puxou-me pela mão escada acima. Faltava-me força para subir os degraus, minhas pernas continuavam trêmulas. Cada passo lesionava minhas coxas e eu soltava o aperto de mão sem perceber. Ele olhou para mim, para a minha palidez, para a minha vulnerabilidade e pegou-me no colo. Em seus braços fortes, fechei os olhos, mesmo sem ter sono, e escutei seus passos nos arrastando para nosso antigo quarto - que ultimamente era só meu.

Ele me colocou na cama. Senti o colchão duro sob minhas costas, mas aquilo nunca fizera me sentir tão bem. Esperei-o tirar a jaqueta e colocar delicadamente em cima da cadeira ao lado da cama, enquanto sorria para mim. Mesmo conhecendo-o tantos anos, ele pareceu um estranho, talvez por causa de todo o tempo que estivemos separados. Deitou-se ao meu lado, com a mão segurando a cabeça e senti em seus olhos que tinha vontade de falar, de começar a explicar sua presença ali, de se desculpar por ter me deixado sozinha por tanto tempo. Não me interessava nada daquilo: eu não procurava por respostas, apesar de ter milhares de perguntas. A única coisa importante no momento era tê-lo por perto, independente do quanto aquilo duraria. Passei meus dedos pelo seu abdômen, subindo até encontrar seu rosto. Isso o fez silenciar-se, ou, como já estava calado, o fez esquecer o que iria falar. A noite caía lá fora, o quarto escurecia e a minha visão tornava-se um pouco turva. Procurei seus lábios antes de escurecer totalmente, e ele correpondeu.

Não me lembro em que medida nós paramos. Depois de beijá-lo, não consegui mais parar de passar minhas mãos por todo o seu corpo para garantir que ele estava lá por completo. Ele também não parava de me tocar, preenchendo-me de uma felicidade inexplicável, ao sentir que seu toque era real. Não chegamos a tirar nenhuma peça de roupa em nenhum momento, só degustamos horas e horas da presença do outro. Ele eventualmente sussurrava algo em meu ouvido, só para eu me lembrar aos poucos da voz dele, e recordar o passado que antes eu julgava perdido. Na maioria das vezes, dizia que eu não mudara nada, que ele continuava desejando cada centímetro de meu corpo. Outras vezes - essas mais raras - ele fazia pequenas declarações, dizendo palavras amorosas e indagando como era possível alguém amar tanto como ele me amava. Ouvi calada, sorrindo, e segurando-o por perto com mais força, com medo de que ele fosse embora de novo. Mas à certa altura, o cansaço nos invadiu. Deitei-me ao seu lado, o mais próximo que pude, e não me atrevi a tirar as mãos dele enquanto adormecia.

Acordei sobressaltada em uma cama fria. Abri meus olhos e descobri que abraçava o vazio. Como? Como era possível? Eu só caíra no sono por alguns minutos e... Ele não estava mais lá. Ele não estava mais lá comigo já fazia tempo, não apenas alguns minutos. Eu já sabia, eu sabia e não queria admitir, não queria admitir para não se tornar verdade. Não queria acreditar. Eu o havia imaginado. Ele jamais voltaria, jamais. Minha mente perturbada o trouxera de volta, mas a volta era um caminho que ele não faria. Bati na parede, gritei com raiva da minha tristeza impotente: eu nem ninguém poderia trazê-lo de volta. Ele se fora para sempre. Para sempre. Para sempre. E com essas palavras se repetindo em minha cabeça, deitei-me encolhendo meu corpo, abraçando meus joelhos, tentando me proteger dos perigos do mundo.. desejando que eu pudesse tê-lo protegido desses mesmos perigos enquanto ainda era tempo. Mas era tarde demais. Doíam todas as juntas do meu corpo e eu desejei que as juntas da cama rangessem, para que eu pudesse ter alguma memória concreta daquela noite. Olhei para meus membros doloridos, minha palidez, minha vulnerabilidade. E eu senti que ele soubesse, que ele sentisse isso também, e tentando lutar contra todos os truques da minha mente - embora não conseguindo - senti quando ele se deitou do meu lado e enlaçou os braços em volta de mim.


Victória Pereira Martins
13/10/2009

"Quién te besó lejos de aqui mientras te inventaba en la cama?"
(Quién - Ricardo Arjona)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Ventura

O sorriso se esvairara de meu rosto
Nada conseguia cessar meu pranto
A vida havia perdido todo o gosto
Ninguém causaria, em mim, um canto

Então você apareceu como um intruso
As cores reapareceram pouco a pouco
E enquanto meu choro caía em desuso
Meu mundo perdia o aspecto de louco

Agora eu desfruto dessa alegria
Aventurada, com sonho e promessa
Mas tenho receio que você, um dia

Como atuando em uma peça
Me abandone à revelia
E novamente, de sorrir, me impeça


Victória Pereira Martins
04/09/2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Filtro de papel

Eu mesma havia assumido responsabilidade pelos meus atos. Ele tentara me avisar para conter meus sentimentos, para evitar a dor que chegaria junto com eles invariavelmente, mais cedo ou mais tarde. E mesmo consciente do fim, eu negava sua proximidade. Esperava como um doente terminal aguarda a morte. Receios à parte, eu tentava ignorar a data praticamente marcada da tragédia. Mesmo com todo o tempo para ter me preparado para o drama, eu nunca estaria preparada para aquilo. Meus dedos tremiam segurando a xícara de café, enquanto ele tentava me abraçar desajeitadamente, com minhas mãos entre nós. Minhas lágrimas molhavam as extremidades da camisa dele, formavam pequenas manchas pretas debaixo dos meus olhos ao derreterem a maquiagem discreta, que me lembraram nuvens de fumaça espalhadas em meu rosto, ao observar meu reflexo na porta de vidro.

A pior parte é que ele havia sido cordial com suas palavras, como sempre. Disse carinhosamente que não tínhamos futuro, que não via como nós podíamos dar certo. Por dentro, eu concordava com cada uma dessas afirmações, mas meu coração diminuía toda vez que ele abria a boca para me dar mais motivos do porquê nunca ficaríamos juntos. Desenlacei-me de seu abraço falso e andei desoladamente até a mesa da cozinha. Ao jogar-me pesadamente na cadeira, derramei todo o conteúdo da xícara fumegante em meu colo. Soltei um grito, a dor começou a embaçar minha visão enquanto ele abria minhas calças desesperadamente e tentava arrancá-las o mais rápido possível de meu corpo, esquecendo-se que o líquido quente derramado raspava as queimaduras já instaladas em minhas pernas. Fiquei olhando para a vermelhidão em minhas coxas enquanto ele colocava gelo em um saco de plástico, em um ritmo desastrado. Observei-o divertida e rancorosa, ao mesmo tempo.

Ele começou a pressionar a compressa gelada nos lugares onde eu havia me queimado. A cena, apesar de dolorida, tomou um caráter excitante. Minhas pernas, nunca antes tocadas desnudas, exalavam calor nas mãos frias dele, segurando o gelo. O contato em diferentes temperaturas manteve nossos olhares fixos um no outro. Fui a primeira a desviá-lo. Disse-lhe que ia procurar calças secas para colocar, eu percebera seu olhar perdido na minha roupa de baixo preta, e a ocasião não era perfeita para erotismos. Ele concordou e eu subi as escadas. Eis que minhas pernas ainda ardiam, fazendo com que eu não conseguisse colocar qualquer calça. Coloquei um vestido qualquer, para não deixá-lo esperando por muito tempo na cozinha cujo chão estava molhado de café quente, misturado nas minhas lágrimas geladas.

Desci as escadas, encontrei-o limpando a sujeira que eu fizera. Sorri tristemente. Ele provavelmente nunca mais pisaria em minha casa depois do episódio. Na verdade, eu sabia que ele nunca mais iria me ver, com ou sem o acidente. Ele levantou-se do chão, seu olhar acompanhando meu corpo de baixo a cima, conforme seu corpo também ficava ereto. Enrusbeci, deixando a cor de minhas bochechas próxima à das minhas pernas. Ele retribuiu o sorriso, mas não como ele sorria nas últimas semanas. Sorriu se desculpando, pedindo licença para terminar de destruir meu coração, levantando e soltando os ombros em um sinal de derrota. O fim era mais forte que sua vontade, talvez ele tentava me dizer. Assenti com a cabeça, mostrando que eu o entendia, dando-lhe permissão para terminar o show da separação.

Ele caminhou lentamente em minha direção. Olhou para mim, muitos centímetros mais baixa, abriu a boca para começar a falar algo, mas mudou de ideia e fechou-a novamente. Ao invés disso, pegou meu rosto em suas mãos e beijou brevemente os meus lábios. Sussurrou "até logo" e soprou um beijo na ponta da minha orelha. Esperei que fizesse mais alguma coisa, mas ele simplesmente pegou as chaves do carro em cima da mesa do hall e desapareceu pela porta, deixando-me ainda mais perdida do que antes, totalmente inconsciente do que aconteceria a seguir. Então peguei a xícara que havia deixado na cozinha e fui ferver água para preparar mais café.


Victória Pereira Martins
24/08/2009

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Orgasmos

Ele saiu de cima dela, ela virou-se para o lado. Ofegantes, estimulados pelo orgasmo simultâneo que haviam tido, mal trocaram palavra. Raquel fazia esforço em sua mente para lembrar o nome do homem, e todas as tentativas eram vãs. O êxtase na cama daquele motel luxuoso a fizera esquecer-se de tudo. As marcas em suas costas começavam a doer à medida que seu corpo esfriava, explicitando a vermelhidão dos dedos do homem, cuja força não estampava em seu tipo físico, e sim durante a performance. Ele já dormia quando Raquel começou a colocar as roupas vagarosamente para não acordá-lo. Ela não tinha planos de vê-lo novamente.

Saiu pela rua à procura de um táxi, mas mal se via carro. Decidiu caminhar, a brisa do fim da tarde talvez lhe fizesse bem, talvez ela se recordasse do nome do homem - não que fosse importante, era só a curiosidade corroendo-a por dentro. Recobrou em sua mente quando chegou ao bar sozinha, decidida a se divertir. Havia muitos anos que não gozava do puro prazer mundano, pessoal, algo que fizesse bem para ela e só para ela. Bebeu algumas taças de vinho antes do homem - como era mesmo seu nome? -, ao qual Raquel destilava olhares fulminantes, deixar os amigos de canto e juntar-se a ela. Os dois embarcaram em uma conversa estranha sobre sexo, amor e a realidade fumegante. Não demorou muito para se destinarem a um motel próximo, onde ele despiu-a sem pressa, fazendo questionamentos sobre o anel em seu dedo. Ignorando-o, ela apenas se entregou à luxúria, e abandonou a aliança em cima do criado-mudo.

Parou no meio da rua. Esquecera-se da aliança de noivado. Em cima do criado-mudo. De um quarto de motel. Onde um homem, cujo nome ela desconhecia, dormia. Virou-se para olhar todo o caminho que tinha percorrido desde que saíra do estabelecimento. Pareceu não ter fim. Correu cambaleante com seus saltos altos, tropeçando nas irregularidades da calçada. Qual era mesmo seu nome? Julio? Augusto? André? Paulo? Vitor? Cada impacto da corrida estalava um nome em sua mente, ela ritmava os passos agilizados com as palavras que o homem dissera quando se apresentara. Não sabia por que se importava tanto com a lembrança do nome dele, ela nunca mais o veria mesmo. Não depois daquele dia.

Chegou em frente ao motel, ofegante como estava havia alguns minutos, quando o homem sem nome lhe proporcionara o orgasmo de sua vida. Mas agora seus pés doíam, seu coração palpitava de preocupação - não prazer - e ela não desejava estar lá, opostamente aos desejos anteriores. Antes mesmo de dirigir-se à recepção, ela viu uma silhueta aproximar-se dela. Escurecia, nenhuma imagem parecia fazer sentido à distância. Embora ela tivesse uma ideia de quem fosse, o desconhecimento da identidade dele a fazia afastar-se da fisionomia formada em sua mente. Ele apareceu sorrindo.

"Acho que isto é seu", ele disse, abrindo os dedos e revelando o anel de noivado nas palmas da mão. Raquel respirou fundo, sentiu uma corrente fria se espalhar pelo seu corpo em frenesi. Antes que ela pudesse falar algo, o homem pegou sua mão e delicadamente colocou o anel no dedo do qual ele nunca deveria ter saído. Esse simples fato a excitou.

"Posso fazer uma pergunta?", Raquel sussurrou, com medo de suas próprias palavras. O homem assentiu com a cabeça, um sorriso irresisível e convitativo no rosto. "Qual é o seu nome?" Ao falar isso, olhou para o chão, envergonhada por não lembrar o nome do homem com o qual acabara de ter um orgasmo.

"Qual é o seu nome, Letícia?", o homem perguntou. Raquel olhou-o confusa, balançou a cabeça, divertindo-se com sua ingenuidade. Ele puxou-a pela mão para dentro do motel de novo, e ela o seguiu. Quando se deu conta, ele a despia mais uma vez, exatamente do mesmo jeito. Dentro do mesmo quarto do motel luxuoso, Raquel deixava sua aliança no criado-mudo, e entregava-se ao homem cujo nome não conseguia se recordar.


Victória Pereira Martins
31/07/2009

Homenagem ao dia mundial do orgasmo.