segunda-feira, 11 de julho de 2011

Persistência

O museu estava cheio de pessoas que olhavam para os quadros como se fossem vazios, sem enxergá-los de verdade. Eu era uma delas. Não me dei ao trabalho de olhar ao redor, e caminhei até encontrar a pintura que eu estava procurando. Conhecia aquele museu muito bem: visitara-o inúmeras vezes quando cursava Artes, na Universidade de Nova York. Estranhamente, ele já não me atraía tanto quanto o fazia naquela época, tão distante na minha memória. Eu havia estudado tanto o sentido de todas aquelas obras de arte, de maneira que esquecera o quanto é belo a falta de sentido. E, ao invés de manter a busca frenética pelo sentido das coisas apenas no mundo das artes, eu transferi essa obsessão para dentro de minha vida. Deixei de apreciar os momentos singulares, e passei a querer encaixá-los em um todo que não existia. Minha vida era toda fragmentada, e eu só percebi o quanto era confusa quando decidi juntar todos os pedaços.

Dezenas de turistas se empurravam em volta do quadro. "A Persistência da Memória", de Salvador Dalí, era uma obra notoriamente conhecida, e todos queriam tirar fotos dela, e, vez ou outra, chegava aos meus ouvidos berros do guarda, advertindo aqueles que esqueciam que flashes eram proibidos. Sentei-me um pouco distante da confusão, como que para apreciar o caos. Era irônico eu ter marcado o encontro justo na sala daquele quadro. Afinal, a minha história com a pessoa que viria me encontrar encaixava-se perfeitamente ao título do quadro. Nós persistíamos em algo que não era real, e que nunca seria. Fora real em outro tempo, que parecia ainda mais distante do tempo em que Dalí pintara o quadro. Sem conseguir seguir em frente, nós mantínhamos a memória como um refúgio, como uma desculpa para continuar nos encontrando. No entanto, tudo aquilo parou de fazer sentido para mim. Todos os olhares e todos os beijos eram vazios, porque nós dois não éramos mais aqueles dois adolescentes apaixonados. Eu comecei a sentir que a pessoa que eu amava não mais existia. Para mim, o vazio de sentido era muito pior do que seria nossa separação. Eu simplesmente não podia conviver com o vazio: era algo que me dava horror. Convidei-o a um passeio pelo museu para lhe dizer aquilo. Escolhi o museu porque me sentia segura lá; porque sentia que era o único lugar onde tudo fazia sentido.

Ele chegou e sentou-se ao meu lado. Aquilo seria mais difícil do que eu imaginara: ele era dono da galeria onde eu expunha meus quadros amadores, já que qualquer outra não aceitaria expô-los. Talvez nós teríamos que continuar nos vendo. Olhei em seus olhos e sorri. Não sabia o que fazia menos sentido: nosso relacionamento ou ter que abandoná-lo. Mesmo cercada de tantas obras, que faziam sentido na minha cabeça, eu me senti vazia. Percebi que eu própria era vazia de sentido. Sempre fora e sempre seria. Porém, eu não havia escolha a não ser conviver comigo mesma. Já com ele, não era mais possível. Eu estava tentando não encará-lo quando ele aproximou-se para pegar minha mão. Afastei-me. Ele me olhou confuso.

"Não posso mais", eu disse. Sua expressão não mudou. "Desculpe, mas nada disso se encaixa. Nós dois fizemos sentido em uma época remota. Agora, parece que estamos insistindo em uma história que acabou".

Ele acenou com a cabeça, nem um pouco abalado com minhas palavras. E eu esperava que ele persistisse ao menos um pouco nas nossas memórias, mas não. Ele parecia aliviado, pelo contrário. Parecia que eu o havia liberado de alguma obrigação surreal de ficar ao meu lado. É, acho que, afinal, eu havia mesmo. Eu, também, estava livre. Nada daquilo fez sentido, não consegui encontrar explicação para nada e não me importei. Não me desesperei tentando juntar os pedaços e descobrir o porquê de sua indiferença. Não gastei um único neurônio cerebral para questioná-lo sobre sua tranquilidade.

"Vou mudar a exposição na galeria", ele disse. "A sua está há muito tempo e não há mais ninguém frequentando o lugar. Passe para retirar seus quadros assim que puder". A princípio, as palavras me preocuparam. O que eu faria dali em diante? Meus quadros eram medíocres, o sentido deles era assaz explícito. Não me importei. Acenei com a cabeça: isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Eu só precisava pintar novos quadros, procurar novas galerias e me refugiar em novos museus. Tudo ficaria bem, afinal. Levantei-me para ir embora.

O museu estava cheio de pessoas que olhavam os quadros sem alguma perspectiva de futuro, esperando que suas vidas não fossem tão vazias quanto aqueles quadros aparentavam. Entretanto, eu não mais era uma delas.


Victória Pereira Martins
11/07/2011

2 comentários:

Nathy Martins disse...

Genial, amei de verdade !

você é uma geniazinha mesmo, Vivi !

=)

Love u =*

Leila disse...

Muito bom, adorei Vic!