Ele me beijou. Nós dois sabíamos que não deveríamos, que estávamos machucando uma terceira pessoa com aquele feito impensável, porém irresistível. A porta estava fechada, e não trancada - aquilo não nos impediu de segurar o lábio do outro por mais tempo do que o razoável. Talvez o nosso razoável não se medisse com uma régua. Talvez nosso razoável exigisse muito mais do que o razoável segundo o senso comum. Talvez nós precisássemos de doses muito maiores um do outro para nos saciarmos. Eu tinha medo de não tê-las. Eu sabia que, por mais que estivéssemos dispostos a nos explorarmos com mais intensidade, nosso tempo era limitado. Eu partiria para a Austrália dentro de cinco semanas. E, então, ficaríamos separados por doze meses. Não que minha breve experiência de vida me desse a certeza de que um relacionamento de cinco semanas não sobreviveria a doze meses de separação; no entanto, eu não era tola. Sabia a realidade: milhares de quilômetros e centenas de dias significariam certidão de óbito para qualquer relacionamento, por mais intenso que este fosse.
Afastei-me. O que eu estava fazendo, afinal? Eu nunca fora assim. Embora o homem, a poucos metros dali, nunca tivesse me dado a atenção merecida - ou, pelo menos, nunca fosse sincero comigo -, não era o caso de querer vingança, ou de fazê-lo sofrer.. ou de fazê-lo sentir ciúmes. Não. Eu não beijara aquele menino, escondida na lavanderia, por nenhum motivo que envolvessem as pessoas do outro lado daquela porta. Aquele beijo dizia somente a nosso respeito. Ele me observou, procurando traços de arrependimento ou remorso em meu olhar.
"Desculpe-me", ele disse. "Eu não deveria..."
"Nós não deveríamos", corrigi. "Mas isso não muda nada. E não me arrependo de ter feito o que fiz", respondi à sua ansiedade, que parecia pedir uma resposta para alguma pergunta omissa. Segurei sua mão. E, talvez, tenha sido o ato de maior proximidade que jamais tivemos.
De súbito, lembrei que deixara água fervendo para fazer café. Como se lera meu pensamento, ele levantou-se ao mesmo tempo que eu. Era engraçado: havíamos nos conhecido naquela mesma noite e parecia que nos conhecíamos desde sempre. Comecei a reparar nele quando o homem que me acompanhava passou a flertar com outras meninas. Não me importava mais. Estava cansada de ser tratada tão levianamente. Estava cansada de homens que não me elogiavam com frequência, que não saíam comigo publicamente e só me procuravam quando ébrios. E, então, percebi o jeito como aquele menino me olhava. Não de maneira erótica, mas de uma forma singela. Como se ele entendesse como eu me sentia, como que querendo amenizar a minha dor. Era o olhar de quem admirava o outro. Passou pela minha cabeça: ninguém nunca olhou para mim assim, fazendo-me sentir tão bonita. E simplesmente por me achar bonita, não porque tivesse segundas intenções.
Enquanto o homem flertava, peguei meu violão, sentei-me em volta da piscina - refletindo lindamente o luar - e comecei a tocar algumas músicas que ele desgostava. O menino sentou-se ao meu lado, e, para minha surpresa, dividíamos o mesmo gosto musical. Cantamos longamente, divertidos, sob a brisa suave daquela noite de inverno. E, deixando um pouco o violão de lado, descobrimos nosso gosto comum por café, também. Decidimos ir preparar um pouco. Sugeri, enquanto a água fervia, que nos sentássemos na escada da lavanderia. E assim o fizemos. Quando o assunto chegou no homem a poucos metros dali, evitei falar demais, porém confessei-lhe de que não suportava mais aquela situação. Disse-lhe que há muito não encontrava alguém que valesse a pena, e me prendia a ele somente por medo de ficar sozinha outra vez.
"Você é muito bonita e inteligente para se prestar a esse tipo de coisa. Duvido que você fique sequer um dia sozinha, caso o deixe. Tem tantos homens que gostariam de estar ao seu lado!", ele me disse. Eu lhe sorri, tristemente, e balancei a cabeça negativamente, sabendo que ele falava tudo aquilo para me agradar. Ele, percebendo meu ceticismo, acrescentou: "Falo sério". E, diante de toda a minha vulnerabilidade e repentino desejo que brotara em mim, ele agarrou meu rosto com as duas mãos e beijou-me, puxando-me pela cintura depois e, claro, segurando-me mais forte, mais intensamente e mais longamente que o razoável. Nenhum de nós era razoável. E, dadas as circunstâncias, eu queria mesmo ser carência ou excesso. Qualquer coisa que fugisse do padrão.
Coei o café com calma. Uma calma que talvez irritasse qualquer pessoa, mas não ele. Enquanto escutávamos o ruído do café preto alcançar o fundo do bule, nada falamos. Apesar trocamos olhares e sorrisos, adequando-nos àquela atmosfera de vapor que se criava à nossa volta, como se, mesmo na penumbra, nós nos reconhecêssemos como iguais. Exatamente como fomos durante todo o nosso tempo juntos. Subitamente, os outros convidados da festa começaram a adentrar a cozinha - provavelmente atraídos pelo aroma do café. Não avistei o homem - este já abandonara minha mente havia muito - e também dei por falta uma das meninas de cabelos louros. Dei de ombros. Aquilo não mais me dizia respeito.
Todos sentaram-se à mesa redonda. O menino sentou-se ao meu lado e, enquanto saboreávamos o café, gole a gole, ele segurava minha mão com força contra a dele - embora o fizesse com cuidado, às escondidas, embaixo da toalha. A sua mão quente contrastava com meu coração gelado, pesaroso por aquelas cinco semanas tornando-se mais próximas a cada segundo. Talvez nós devêssemos considerar tudo aquilo como um caso de uma noite, uma estupidez, uma loucura passageira, antes que tudo tomasse proporções tão grandes quanto a Oceania. Talvez eu devesse largar de sua mão naquele mesmo instante, procurar um lugar vago à mesa, fumar um cigarro e aceitar que casos de amor não começam assim. Eu sequer procurava por um caso de amor. Queria distância deles. Ou pelo menos, eu pensava que sim.
O homem, que chegara comigo à festa, entrou cambaleante no aposento, com a loura nos braços. Olhou-me perplexo - esquecera-se da minha presença. A menina que ele abraçava estava com as alças de sua blusa caídas pelos ombros, a saia levemente levantada e seu batom, desgastado e manchado. Ele, com seu olhar nada sóbrio, tentou gesticular qualquer palavra enquanto eu me preenchia com uma sensação de humilhação. Levantei-me e, vagarosamente, voltei ao quintal da casa, em volta da piscina - o menino me seguiu. Senti-o abraçar-me quando eu afundei meu rosto em minhas mãos, tentando entender todos os meus sentimentos contraditórios. Queria pegar o primeiro avião para a Austrália mas, ao mesmo tempo, queria prolongar aquelas cinco semanas em cinco meses.
Olhei-o bem fundo nos olhos, tentando chorar. Queria me sentir subjugada, mal amada, abandonada. Não senti nada daquilo. Seus olhos me fizeram mudar de ideia. Talvez em parte por sua presença - que, inexplicavelmente, me trazia paz -, talvez em parte pela visualização incerta do futuro, eu senti que cinco semanas eram o suficiente. Por um lado, era muito tempo para me envolver tanto quanto eu deveria. Por outro, era demasiado pouco para me envolver quanto gostaria. No entanto, cinco semanas seriam o bastante para que se tornasse inesquecível.
Victória Pereira Martins
20/07/2009 até 05/09/2011
"O que tem de ser tem muita força. Ninguém precisa se assustar com a distância, os afastamentos que acontecem. Tudo volta! E voltam mais bonitas, mais maduras, voltam quando tem de voltar, voltam quando é pra ser. Acontece que, entre o ainda-não-é-hora e nossa-hora-chegou, muita gente se perde." (Caio Fernando de Abreu)
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
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