quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

A promessa

Ela não sabia onde Carlinhos a estava levando, mas já estava cansada de subir a tortuosa ladeira com sua bicicleta.
- Chegamos, prima! – disse a doce e suave voz que por muito tempo Amanda fora apaixonada – Lembra-se desse lugar?
Decerto, aquela rua sem saída com casas todas iguais não lhe era estranha com os olhos da infância. No final, não tinha um retorno ou um jardim, e sim uma fonte com uma fada no centro. Provavelmente, da ponta de sua varinha saía água, mas não daquela vez. É, de fato, a lembrança permanecia, pensou Amanda enquanto seus leves cabelos cor de mel, exatamente o mesmo mel de seus olhos, balançavam calmamente à hesitante brisa. Ela olhou para o primo e pela primeira vez desde que o reencontrara percebeu como ele estava incorporado, diferente e mais bonito. Suas feições estavam adultas, seus olhos, do castanho que eram, haviam-se transformado em um tom quase verde. E seus cabelos continuavam loiros, cacheados e suaves, estranhamente desejáveis.
Quando ela se deu conta de que havia desviado muito sua atenção, percebeu também que ele ainda estava esperando ansioso pela sua resposta. Então, vasculhou bem fundo na sua memória até achar qualquer vestígio de que já estivera naquele lugar antes. As lembranças começaram a aparecer e fluíram cada vez mais depressa à medida que a menina examinava mentalmente os momentos que passara lá.
- Está bem diferente – disse por fim. – Não era tão deserto. E essas árvores eram apenas mudas! – Abriu um sorriso com entusiasmo. – Ah, Carlinhos! Você lembrou! Costumávamos brincar por aqui quando tínhamos... Dez anos? É! Isso mesmo. – O menino sorriu também. – Seis anos depois você... – algo a interrompeu – Calma aí! Por que me trouxe aqui? Alguma data especial?
-Poxa, Amanda! – sua cara ficara séria – Francamente, achei que você se lembraria! 17 de Julho! Meu aniversário de 17 anos. Lembra das nossas longas conversas de que você só faria uma vez na vida uma idade igual à data? 17 em 17! Fizemos uma promessa, sabe? Não importa onde estivéssemos ou onde a vida nos levasse, a gente se encontraria nessas datas! 17 em 17 e 24 em 24!
Ela riu alto e com gosto. Lembrava-se de passagem, mas jamais pensou que eles voltariam a se encontrar. Depois que eles tomaram rumos diferentes – ele saíra da cidade para estudar e ela continuara lá, se privando das coisas que a fizessem lembrar dele -, esperou três anos! Três anos! E finalmente resolveu esquecer. Mas o primeiro amor, seja com dez, trinta ou sessenta anos, quando chega ao fim dói tanto que a dor se torna insuportável e é preferível mentir para si mesmo a conviver com isso. As lembranças diminuem, a falta que a pessoa faz se torna insignificante, mas no coração de quem ama, sempre sobra uma brasa esperando para arder de novo.
Agora, olhando diretamente para ele e sentindo as chamas acesas, suas suspeitas do início estavam erradas. Antes que pudesse perceber, seus olhos encheram-se de lágrimas e Carlinhos a abraçou.
- Priminha, não chore! Eu te amo tanto! – e se inclinando a ela, tocou seus lábios molhados. As lágrimas cessaram. Então, o beijo começou. E o pesadelo também.

Como num filme, todos os acontecimentos passaram pela cabeça de Amanda. Primeiro, eles brincando quando eram apenas crianças, crescendo, tomando rumos diferentes, sofrendo com a separação, se reencontrando, namorando por anos, casando, tendo vários filhos, vendo-os crescer, envelhecendo ao mesmo tempo e morrendo um ao lado do outro. Quantos anos jogados fora, pensou a garota tristemente, mas sabendo que agora que estavam juntos nada poderia vencê-los. Exceto eles mesmos.
Sentaram-se no chão, lado a lado, e contaram um ao outro sobre os acontecimentos depois que Carlinhos deixou a cidade. Assim propagou-se durante uma ou duas horas, e os dois estavam tão entretidos na conversa que nem notaram a passagem do tempo. O sol já tinha ido embora, dando um ar fantasmagórico àquela ruazinha que aparentava ser feliz. O silêncio reinou o lugar completamente deserto, e eles ficaram calados vendo a lua nascer por entre as árvores. Carlinhos pousou a mão carinhosamente no rosto de Amanda e ela olhou para ele com o canto do olho. Eles se beijaram imediatamente. Era automático, mal conseguiam resistir um ao outro. As mãos dele percorreram todo o corpo da prima, que sentia seu desejo aumentar cada vez mais. Quando ele estava prestes a abrir seu sutiã, ela impediu-o. Lembrara-se de todos os ensinamentos da mãe, religiosa extremista, que lhe dissera para não permitir liberdade com os garotos e insistia que sexo era só depois do casamento. Ele lançou-lhe um olhar severo que a fez estremecer por dentro. Morria de medo que seu primo desistisse dela por ser pura e não liberal. Respirou fundo e voltou a beijá-lo de uma forma mais selvagem. Sentia-se culpada por isso, mas fazia do mesmo jeito.
Quase entrou em pânico quando ele a deitou no chão, mas agüentou firme. Continuaram beijando no chão frio durante algum tempo, ao som da cantoria incessante das cigarras. Mesmo naquele momento, Amanda conseguiu rir ao lembrar que há seis anos ela brincava inocentemente naquela mesma rua e que tinha medo de escuro.
Esperou até o momento em que Carlinhos abriu o zíper da calça, com a esperança de que alguém apareceria para salva-la daquele pesadelo. Mas como isso não aconteceu, ela sussurrou baixinho:
- Não quero.
Ele fez que não escutou e ela segurou suas mãos freneticamente numa tentativa frustrada de pará-lo. Mas foi em vão, ele estava completamente decidido a terminar o que fora fazer. Tirou violentamente o short da menina, e ela só pôde assistir a aquilo atônita, sabendo que ela não o conhecia mais. Ele a olhou por uma última vez antes de tornar a beijá-la, e percebeu que havia lágrimas em seus olhos. Amanda sentiu uma vontade imensa de gritar quando aquele menino que ela tanto amava a penetrou sem carinho algum, mas seu grito de horror nunca foi ouvido.
Quando ele se fez por satisfeito daquele corpo quase sem vida, levantou as calças e partiu lentamente, deixando-a pra trás. A garota só conseguia chorar, e demorou quase meia hora até acalmar-se. Ficou lembrando da tarde que acontecera naquele mesmo dia, mas que parecia tão distante. Lembrou de quando ele falara da promessa. E parou, surpresa. Era dia 17 de Julho. Mas não era aniversário de seu primo. Ele mentira, e ela nem se dera conta. Viu-se sozinha naquele lugar tão sombrio e seu medo de escuro voltou. Ela sabia que não tinha o que temer, apenas a longa e dramática jornada de sua vida que viria adiante. Temia o sofrimento pelo qual passaria. Nada mais seria igual. Contemplou aquele cenário banhado pela lua, que aparentava ser maravilhoso algumas horas antes, mas que guardava lembranças dolorosas demais. Quando achou que já perdera muito do seu tempo ali, levantou-se devagar e dirigiu-se para o lugar onde deixara a bicicleta.

Victória Pereira Martins
09/01/2007

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